Cotidiano

'Nas redes, quem não tem estômago abandona o debate', diz Michel Laub

62624849_SC - Michel Laub autor de O tribunal da quinta-feira.jpgRIO ? ?Todo linchador age em nome de princípios nobres?, afirma o narrador de ?O tribunal da quinta-feira?, vítima de massacre virtual. A frase vem de um discurso a uma corte imaginária ? e resume uma questão que Michel Laub queria ressaltar em seu novo livro:

? Em algum ponto da escrita, eu me dei conta de que deveria dar mais ênfase ao que o protagonista chama de ?fascismo do bem? ? afirma Laub, se referindo ao discurso bem-intencionado, mas com atitude intolerante. Livros, 12.11

Os réus desse tribunal metafórico são José Victor, publicitário paulista de 43 anos (mesma idade do autor gaúcho), e Walter, colega de profissão com quem ele cultiva uma correspondência virtual. Anos de e-mails levaram a um dialeto próprio, repleto de referências obscuras e piadas internas de todos os matizes. Gay e portador do HIV, Walter fala em ?pilões de carne? e ?câncer sodomita? (a Aids, aliás, permeia o livro). José, em fim de casamento, apelida-se de ?cadáver eunuco? e à amante Dani, de 20 anos, de ?vítima?.

O diálogo privado e cifrado se torna público e notório quando a ex de José invade seu e-mail, seleciona trechos e envia a destinatários indiscretos. Resultado: a vida do publicitário é atropelada por um dilúvio de mensagens de ódio ? que, anexadas à declaração de defesa do narrador, compõem os curtos e instigantes capítulos de ?O tribunal da quinta-feira?.

Neste sétimo romance, o autor conta que buscou tratar do mesmo tema de suas últimas e, talvez, das futuras obras: a tolerância.

? Esse é um assunto inesgotável ? diz Laub, que, em entrevista ao GLOBO, fala sobre o seu livro mais recente, a sua obra e o radicalismo crescente nas redes e no Brasil.

Houve algum caso real de linchamento virtual que inspirou o episódio do livro?

Há casos a todo momento, e não precisam ser os notórios. Mas não me interessavam tanto os motivos e tramas desses casos, e sim uma essência que une a todos: a questão da tolerância no nosso tempo, de como a tecnologia está mexendo nisso em termos de natureza e grau.

Estamos menos tolerantes?

O Brasil nos últimos anos seguiu a lógica das redes: quanto mais radical você for, mais chance terá de ser ouvido em meio à cacofonia. Quem não tem estômago abandona o debate. Dos que restam, há os que têm convicção e boa fé, mas não estão necessariamente corretos, e os oportunistas. A eleição do Trump tem razões econômicas, mas também é um triunfo que deve muito à cultura dos reality shows, que é, em grande parte, a cultura das redes sociais.

Como a Aids entrou no enredo?

Todas as questões que abordei ? identidade, sexualidade, limites do humor, radicalização de ideias ? podem ser discutidas a partir desse mote. Pareceu-me interessante tratar do assunto de uma perspectiva mais distanciada, numa época em que a doença não é mais tão letal. É semelhante ao que fiz em relação ao Holocausto em ?Diário da queda? (2011) ou à morte do Kurt Cobain em ?A maçã envenenada? (2013): olhar para essas tragédias décadas depois, com mais liberdade para extrair sentidos ambíguos e, com sorte, inesperados.

Você cita várias informações sobre a doença. Pesquisou sobre o tema?

Minha vida sexual começou no fim dos anos 1980. Toda a parte histórica, digamos assim, é de memória. Pesquisei sobre a doença hoje e consultei um especialista para ter certeza de quais erros queria ou não cometer.

62624902_SC - capa de O tribunal da quinta-feira novo romance de Michel Laub.jpg

Além de não ser confiável, a voz do narrador parece mudar ao longo do romance.

A primeira parte fala em ?bicha velha? e termos desse naipe. No final, o amigo gay é ?homoafetivo?. Há uma evolução no discurso à medida em que a história avança, como que para mostrar que o drama é o mesmo, mudando-se ou não o modo como falamos sobre ele. É uma ironia do texto e, quero crer, uma crítica à hipocrisia como essas coisas são tratadas muitas vezes.

Você vê hipocrisia no politicamente correto?

Vejo o que o narrador chama de ?facismo do bem?. Em algum ponto da escrita me dei conta de que deveria dar ênfase a esse discurso tolerante associado a uma atitude intolerante. Ser contra o fascismo bruto e puro é relativamente fácil, é um pouco como pregar para convertidos, algo literariamente anódino.

Como no livro, você será julgado pelo tribunal virtual: é um heterossexual abordando o universo gay. Qual sua posição com relação à questão da legitimidade?

Minha posição é a favor da liberdade do escritor de fazer o que quiser. O dia em que abrirmos mão disso, acaba a literatura. Claro que o escritor paga o preço pelas suas escolhas, de acordo com os parâmetros de sua época. O que eu fiz pode desagradar a muitos leitores de hoje, mas é uma briga que vale a pena. No momento em que passamos a discutir a legitimidade de um narrador de ficção, defender valores x ou y, entramos num debate alheio a mecanismos básicos da arte. Ficção é empatia, e empatia é algo necessariamente difícil ? se fosse para ver os nossos próprios valores confirmados no que lemos, melhor ficarmos com o discurso das redes sociais.

Já tem um próximo projeto de ficção?

O tema dos meus três últimos livros é tolerância. Esse é um assunto inesgotável, mas a forma como o contei, a partir de pontos de vista distanciados, em primeira pessoa, eu provavelmente não usarei mais. Isso dentro do que dá para prever: os livros nunca viram aquilo que pensei para eles no início.

Leia trecho de ‘O tribunal da quinta-feira’, de Michel Laub:

?Você pode escapar de uma época, mas não de todas as épocas. Bem-vindos ao tribunal. A audiência pode tomar seus assentos neste dia bonito de 2016. À esquerda, ocupando os blocos de arquibancada que se enfileiram até a linha do horizonte, está a acusação. À direita, no banquinho sem encosto, está o acusado Walter, quarenta e três anos, publicitário brasileiro com prêmios internacionais. Um metro e oitenta e um de altura. Cabelos castanhos. Prato preferido, frango com quiabo. Bebida preferida, gim. Walter é portador do vírus da a-i-de-esse e está à disposição da promotoria para responder perguntas, ser advertido, ouvir insultos, ajoelhar no milho e ter as feridas cobertas com sal.?

SERVIÇO

“O truibunal da quinta-feira”

Autor: Michel Laub

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 184

Preço: R$ 34,90