Cotidiano

Na onda do ?coliving?, cariocas adotam uma nova forma de morar

2015 907352476-201605051757223984.jpg_20160505.jpgRIO – Mãe e filha, Andreia e Lara Gama moravam desde sempre num apartamento de 80 metros quadrados em Laranjeiras. Até que, em janeiro deste ano, as duas resolveram se mudar para uma mansão de 700 metros quadrados, no vizinho Cosme Velho. O novo endereço tem jardim, piscina, churrasqueira e outros sete moradores que, como elas, decidiram experimentar a vida numa casa compartilhada. Cada um tem seu quarto, enquanto copa, cozinha, sala, lavanderia e área de lazer são usadas por todos. As tarefas domésticas são divididas, assim como as contas de luz, água e gás.

? Ficamos ricas sem precisar ganhar na Mega Sena. Ganhamos em qualidade de vida, claro, mas principalmente em conteúdo, espiritualidade, diversidade ? enumera Andreia, socióloga de 47 anos, que alugou o apartamento de Laranjeiras para um amigo francês de passagem pela cidade.

Estudante de dança, Lara, 19, completa:

? Antes, eu morava no apartamento da minha mãe, com as regras dela. Sinto que essa casa é mais minha. Tenho maior poder de escolha. E a família cresceu. Quando tenho uma questão com a minha mãe, converso com algum dos meninos.

Enquanto termina de se arrumar para trabalhar em sua suíte, localizada no mesmo corredor onde fica o quarto da filha (são nove dormitórios divididos em dois andares), Andreia vai além.

? Quando morávamos sozinhas, eu tinha que falar para a Lara lavar a louça e reclamava quando chegava tarde. Aqui, deu uma diluída. Tenho outros focos. E minha filha participa de todas as atividades. Acho que viver numa casa compartilhada deveria ser uma escola para todos os adolescentes de classe média do Rio de Janeiro ? opina.

O estilo de vida em voga é inspirado num movimento que nasceu na década de 1970, na Dinamarca, e foi oficialmente batizado como ?cohousing? pelo arquiteto Charles Durrett, nos idos de 1988, na Califórnia. Bem popular nos Estados Unidos e em diversos países da Europa, as comunidades urbanas começaram a ganhar força no Brasil em 2013, inciando por São Paulo. No Rio, pipocaram no último ano, da Zona Sul à Zona Norte. E a tendência, também chamada ?coliving?, dizem os especialistas no tema, é de crescimento.

Numa primeira olhada, o esquema lembra a logística das repúblicas estudantis, mas basta tomar um café com um dos adeptos para entender que economizar a grana do aluguel não é a questão central. Trata-se de uma opção feita por pessoas de todas as idades, amigos, amigos dos amigos, casais, irmãos, mães e filhas. A maioria é formada, pós-graduada e bem-sucedida profissionalmente. O objetivo é compartilhar experiências e viver da forma mais sustentável possível.

? O que está acontecendo hoje é um movimento mundial muito lindo, uma transição para outro modo de habitar o planeta. Há um anseio humano em recuperar o que foi sugado pelo sistema. É uma transformação onde tecer vínculos comunitários é essencial ? analisa a arquiteta e pesquisadora Lilian Lubochinski, fundadora de uma consultoria chamada Cohousing Brasil.

2016 907349389-201605051744243952.jpg_20160505.jpgOs vínculos comunitários são tecidos diariamente na residência que Andreia e Lara compartilham com Bruno Rosostolato (economista), Elisabete Amorim (massoterapeuta), Micael Hocherman (diretor de fotografia), Sadhana Sokol (antropóloga), Thiago Saldanha (produtor cultural) e Washington Ferreira (produtor editorial), e que ganhou o nome de ?acasa?. Logo na entrada, um cartaz aponta as regrinhas básicas: de ?Tire seus sapatos? a ?Traga coisas boas, leve coisas boas?. Dicas de boa convivência são espalhadas por todos os cantos. O lema, escrito num papel roxo, é ?Ajude a manter todos os espaços limpos e harmônicos: se encontrar uma tarefa, ela é sua?. Na cozinha, um quadro mostra quem é o responsável pela reposição de produtos de limpeza, pela retirada da cesta de orgânicos, por fazer o pão de cada dia.

Para apoiar a gestão consensual do espaço, são estudados os conceitos da Sociocracia e do Dragon Dreaming, que visam uma organização não hierárquica, horizontal e colaborativa. Para completar, de 15 em 15 dias, os moradores d?acasa se reúnem num grupo de Comunicação Não Violenta (CNV), método desenvolvido pelo psicanalista americano Marshall Rosenberg, que apoia o estabelecimento de relações de parceria e cooperação com base na empatia.

? Morando conjuntamente, as fundações da casa não são as pilastras de concreto. São as relações. E, se as relações não estiverem bem, a casa desmorona ? observa Thiago Saldanha, de 30 anos. ? Viver de forma compartilhada é passar da lógica da escassez para a lógica da abundância.

Semana passada, o último morador a chegar foi Washington Ferreira, de 48 anos.

? Eu estava de saco cheio da individualidade. Vim em busca da coletividade, desse aprendizado ? conta o baiano radicado em Minas Gerais, que há 12 anos morava num quarto e sala em Copacabana.

Massoterapeuta, a carioca Elisabete Amorim, de 30 anos, conversava com um cliente sobre a vontade de viver em comunidade quando ele comentou que era dono de uma casa fechada há dois anos, que não conseguia vender. Ela falou sobre a possibilidade de alugar a propriedade com amigos, esses amigos sondaram outros amigos, os interessados fizeram uma reunião e, em um mês, nasceu acasa.

? É um desafio diário, um resgate das relações que ficaram perdidas. Em grupo, você se depara com várias questões que fugiria se estivesse sozinha num apartamento. Os outros são nosso espelho. E isso acelera o processo de autoconhecimento ? avalia Elisabete.

Nova-iorquina baseada no Rio, a antropóloga Sadhana Sokol, de 32 anos, concorda:

? Fácil, não é. Mas há um alinhamento que facilita a harmonia da casa.

Quando há conflito, tudo se resolve na base da conversa. Na roda de Comunicação Não Violenta ou no grupo do WhatsApp.

As dificuldades não impedem o encantamento pelo lugar. Há fila de candidatos a morador. Sábado passado, durante a abertura oficial d?acasa, ouvia-se repetidamente a frase ?Também quero morar aqui?. Foi um dia de programação intensa, com ?Meditação para o novo Brasil?, na sala de estar, e apresentação do grupo Tambores de Olokun, no quintal.

? Abrimos a casa para mostrar que é possível resgatar esse espírito comunitário mesmo habitando grandes centros urbanos. Existem muitos imóveis ociosos no Rio. Esperamos que o nosso projeto possa dar ânimo à criação de outras casas coletivas na cidade ? explica Thiago Saldanha.

A inauguração da casa foi produzida por moradores e colaboradores, com contribuição voluntária de 300 convidados.

? Além de festas, promovemos workshops. Almejamos que um dia acasa seja autossustentável ? diz Bruno Rosostolato, economista de 35 anos.

2016 907405474-201605060057114490.jpg_20160506.jpgAtividades culturais com renda vertida para investimentos internos são um denominador comum nas casas compartilhadas do Rio. Na Legalaje, localizada na Avenida Niemeyer, rola de um tudo, de shows de mantra a rave. No fim do mês, os moradores vão promover um bazar. São vasinhos de suculentas, mandalas, bolsas e até uma linha de cuecas samba-canção: tudo produzido na casa pelos próprios.

Foi o gosto por moda e por design que uniu a paulistana Paloma Christiansen, o carioca André Felipe Bispo e os mineiros Marcela Santiago e Francisco Rath, o Kiko ? todos com seus 20 e poucos anos. Sinal dos tempos, os quatro se conheceram através das redes sociais.

? Eu seguia a Paloma no Instagram. Era fã do estilo dela. Acabamos virando amigas e ela me falou que tinha uma vaga na casa ? conta Marcela. ? O que nos une também é a paixão pelo Rio. Somos muito conectados com a praia. Eu não tinha condições de pagar aluguel de um apartamento de frente para o mar sozinha. Juntos somos mais fortes.

O quarteto e as agregadas oficiais, Fernanda Bradaschia e Madalena Godinho, continuam abastecendo as redes, agora com a hashtag #legalaje.

? Caprichamos na cenografia dos eventos que rolam na nossa laje, que já virou um point entre nossos amigos ? conta André.

O sentido de comunidade surgiu de forma espontânea na casa. Os três andares, atualmente, são divididos em quatro apartamentos. E há determinados ambientes compartilhados, como a cozinha e a famosa laje.

O imóvel é propriedade do ator e fisioterapeuta Paulo Cesar Rocha, conhecido pelo personagem Paulo Cintura em ?Escolinha do Professor Raimundo? (?Saúde é o que interessa, o resto não tem pressa?). O primeiro a chegar foi Kiko, namorado de Paloma.

? O nosso encontro é abençoado pelo Paulo Cintura. Todo dia de manhã eu convoco a comunidade para fazer ginástica na varanda ? brinca Kiko, modelo e ator de 25 anos.

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Enquanto modelos de coliving começam a ser ensaiados em solo carioca, estudos acadêmicos avançam sobre o tema. Integrante do movimento Cidades em Transição, a educadora Taisa Mattos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi à Alemanha pesquisar sobre modos de vida sustentáveis.

? Visitei um antigo prédio, desocupado após a Segunda Guerra. Lá, cada núcleo familiar mora em seu quarto, com sala de TV, lavanderia e cozinha partilhadas ? conta Taisa. ? O coliving surge como uma proposta que pode dar certo mesmo num mundo em que as pessoas estão acostumadas a valores individualizados, pois a ideia é manter o espaço privado de cada um, só que de forma otimizada.

Maior autoridade em cohousing no Brasil, que viaja o país inteiro palestrando sobre o movimento, a arquiteta Lilian Lubochinski planeja construir, em breve, um empreendimento de casas compartilhadas focado no público da terceira idade, em São Paulo.

? É um trabalho com idosos que foram da geração hippie, que estão ?envelhecentes? e em busca de soluções mais adequadas para dar conta da longevidade ? explica a urbanista.

Por sua vez, a gestora de projetos carioca Gabriela Valente está desenvolvendo um coliving para ?mães solo?, em parceria com a amiga Priscila Accioly. As duas têm filhas pequenas e frequentam espaços de economia colaborativa, como os de coworking, primo, aliás, do cohousing.

? O objetivo é levar essa discussão para o âmbito público, uma vez que se trata de uma solução coletiva para a cidade. Em Milão, por exemplo, a prefeitura concede isenção de IPTU para colivings ? compara Gabriela. ? No Rio, existe uma leva enorme de mulheres com vontade de ensaiar essa nova forma de convivência, essa nova forma de criar os filhos, com creches em casa e unschooling. Famílias mononucleares não são mais uma forma sustentável de se viver. Não é um plano. É a saída.

2016 908215573-201605092251257580.jpg_20160509.jpgO alinhamento do processo de coliving com projetos de educação é a essência da Casoca, comunidade urbana criada há seis meses numa simpática vila na Tijuca. Dos seis moradores, quarto são educadores: Adriana Pereira de Almeida Salles, Ana Laura Macedo, Marcela Rosolia Matis e Mayara Gonçalves Vieira. Jovens de 20 e poucos anos, elas trabalham numa creche parental no Flamengo e num projeto de educação infantil no Cosme Velho.

? Começamos a desenvolver um projeto para trabalhar em casa também, pelo menos por dois dias na semana ? conta Adriana. ? Por que não trazer crianças aqui da Tijuca para a nossa casa e dividir com elas a experiência de se viver numa comunidade?

Os outros dois moradores são o cineasta Lucas Macedo, de 24 anos (que vem a ser irmão de Ana Laura), e a professora de ioga Natalia da Costa, de 26 (seu namorado, o animador André Perlingeiro, de 36 anos, é o agregado oficial da Casoca).

? Fizemos um casocamento ao entrar na casa. No ritual, lemos as nossas intenções ? conta Ana Laura.

? E cada um plantou uma árvore na hortinha que temos no terraço ? completa Adriana.

A Casoca tem cinco quartos: dois são individuais, dois são compartilhados e um é usado como sala de terapias. Todos os ambientes foram decorados com móveis doados ou reaproveitados. Paletes fazem as vezes de sofás e gavetas encontradas em caçambas, na rua, foram forradas com chitas para virar módulos de estante. Os seis dividem o aluguel e todas as contas, penduradas numa cortiça. Outro quadrinho elenca os responsáveis por cada espaço da área comum ? cozinha, banheiro, sala.

? A cada mês, um de nós se candidata a ser guardião do dinheiro, guardião da limpeza, guardião da comida. A ideia é que seja rotativo para todo mundo experimentar tudo. Já tiveram alguns perrengues, claro, principalmente com comida. Dois meses atrás, a casa ficou totalmente desabastecida ? conta Ana Laura. ? Eu tive um conflito e, como estava lendo Paulo Freire, que fala da muito da mudança através da revolta, escrevi um texto desaforado no nosso grupo do WhatsApp. Deu certo: fizemos reunião na mesma noite e resolvemos o problema.

Ana Laura conta a história enquanto é atentamente observada pelos demais moradores.

? Por mais que pareça complicado, com várias reuniões e divisões de tarefas, o objetivo da comunidade é simplificar a vida ? ela diz.

Adriana pede a palavra:

? Te fortalece muito dividir as questões diárias com outras pessoas. É uma força mesmo, diante de tantos problemas que estamos vivendo no país. A sensação é que podemos crescer juntos.

2016 908215638-201605092251327581.jpg_20160509.jpgO grupo se uniu após viver uma experiência em Piracanga, ecovila localizada em Itacaré, na Bahia. Cada um passou uma determinada temporada lá (de um a seis meses).

? Os jovens saem de Piracanga empoderados, com um potencial de criação muito grande e com vontade de mudar o mundo mesmo ? empolga-se Ana Laura.

Líder da Comunidade Tribo Inkiri de Piracanga, Angelina Ataíde esteve no Rio para uma palestra, mês passado, e ficou orgulhosa quando soube da criação da Casoca.

? Em Piracanga, além de vivermos em comunidade, oferecemos oportunidades para que outras pessoas venham para cá e tenham uma experiência de vida comunitária. São práticas muito transformadoras ? enfatiza Angelina. ? O que me encanta muito é a energia e o potencial de transformação dos jovens. O processo para eles é muito rápido e eles têm muita força de vontade para colocar em ação. A Casoca é um exemplo de comunidade urbana que nasceu inspirada por pessoas que passaram por Piracanga e hoje vivem seu sonho de comunidade na cidade inspirando mais pessoas nesse processo de transformação. A base de todo esse movimento de comunidades intencionais e casas compartilhadas é um despertar da humanidade para o valor da união. Essa é a base de uma nova humanidade que já surgiu e está se consolidando cada vez mais em diversas partes do planeta ? diz.

Diretor do documentário ?Ecovilas Brasil?, o carioca Rafael Togashida tem uma teoria singular para o movimento:

? A primeira grande virada acontece quando a humanidade deixa de ser nômade e começa a criar assentamentos praticando a agricultura. A segunda é a Revolução Industrial. E a terceira é agora, a era da colaboração. A primeira aconteceu em milhares de anos, a segunda em gerações e a terceira vai acontecer muito rápido, estima-se que em 20 a 30 anos. Na verdade, já está acontecendo.