Cotidiano

Mulheres questionam a imposição do salto alto, incluindo Julia Roberts

FILMFESTIVAL-CANNES_-G0A2NEITL.1.jpgRIO – Na história da Cinderela, um sapato de salto foi capaz de mudar a vida de sua dona, com direito a um final ?felizes para sempre?. Mas a vida, sabemos, não é um conto de fadas. Se para algumas mulheres andar a dez, 15 centímetros do chão não passa de uma simples escolha, para outras pode não ser.

Mesmo nos dias de hoje, há uma imposição, como se fosse um código de moda que não pode ser quebrado, principalmente em eventos de gala. Por isso, foi lindo ver a atriz Julia Roberts atravessar o tapete vermelho descalça durante a 69ªedição do Festival de Cannes, que termina amanhã. Foi, sim, um protesto. Mas um protesto sorridente e um tanto atrasado.

A atitude de Julia foi uma resposta à edição de 2015, quando a produtora dinamarquesa Valeria Richter, que tem parte do pé esquerdo amputado, foi barrada quatro vezes ao caminhar de sapatos baixos pelo tapete vermelho em direção à prèmiere de ?The see of trees?, de Gus Van Sant. Na pré-estreiado filme ?Carol?, também em 2015, três outras mulheres não puderam entrar na sala de exibição por não estarem de salto.

Inglesa lidera campanha por salto baixo

O protesto das estrelas de Hollywood em Cannes reforçou ainda mais uma discussão que levantou polêmica dias antes no Reino Unido.

Na semana que passou, a recepcionista inglesa Nicola Thorp começou a recolher assinaturas para um abaixo-assinado que pede modificações na lei local que confere às empresas o direito de demitir funcionários que não obedecem códigos ?razoáveis? de vestuário. Se Nicola conseguisse recolher cem mil assinaturas, haveria uma chance de os parlamentares britânicos discutirem a questão. Ela conseguiu até mais: já recolheu quase 140 mil (só cidadãos britânicos ou moradores do Reino Unido podem assinar).

A história de Nicola começou em dezembro de 2015, quando ela se recusou a usar salto numa vaga temporária de recepcionista. A empresa exigia o uso de sapatos com saltos de cinco a sete centímetros de altura. Por ter reclamado que os funcionários do sexo masculino não passavam pela tortura de ficar nove horas de salto, ela foi suspensa.

Sabendo disso, a ONG Fawcett Society criou a campanha #FlatsFriday (algo como sexta sem salto). A história ganhou o apoio de mulheres do mundo inteiro, que postaram fotos de calçados flats, numa demonstração de união na luta pelo direito de usar o que bem entendem em qualquer situação.

“Verdadeira militância feminista”

A revista francesa ?L’Express? elogiou o protesto de Julia Roberts ? que teve a companhia de Kristen Stewart e Sasha Lane ? apontando-o como uma ?verdadeira militância feminista?. A estrela britânica Emily Blunt engrossou o coro: ?Todo mundo deveria usar sapatos sem salto. Eu mesma prefiro All Star. Esse tipo de atitude (do festival) faz a gente repensar como muitas pessoas ainda acham que as mulheres só podem ser rentáveis e interessantes, como os homens, se forem impecáveis no modo de se vestir?.

Para a antropóloga Mirian Goldenberg, as mulheres compactuam com um código de vestir que não é visível.

? É simbólico quando a Julia Roberts protesta contra isso, porque nós não temos consciência de que reproduzimos nos corpos, nos sapatos e nas roupas regras de extrema opressão ? diz Miriam. ? Alguém inventou que usar salto é mais bonito, feminino e adequado, mas ele é talvez o instrumento mais opressor, porque nos impede de nos locomovermos com facilidade. E causa dores na coluna.

Usado por algumas mulheres como uma arma de sedução, o salto perdeu uma entusiasta. A atriz Sarah Jessica Parker, a Carrie Bradshaw de ?Sex and the city?, foi proibida de usá-lo por seu médico. Pudera: ela chegava a ficar 18 horas em cima de um escarpim.

Para entendidos de moda, altura do salto não mede elegância

2015 874724295-ecsimgfilmfestival-cannes_-gjg1loool.1-6438551598407420856.jp.jpgQuem foi mesmo que disse que é preciso estar de salto alto para ficar elegante? Ex-modelo da Chanel (aliás, foi a primeira a assinar um contrato de exclusividade com a marca), a francesa Inès de la Fressange é apontada pelo coordenador de moda do ELA, Gilberto Júnior, como um exemplo perfeito de que abrir mão dos sapatos altos não significa mandar embora a elegância. Segura de seu estilo, ela pisa firme e rente ao chão em qualquer tapete vermelho do mundo. Sempre arrasa.

? Claro que dá para ser chique sem salto alto. Há algumas temporadas, grifes como Chanel e Dior colocaram tênis em seus desfiles de alta-costura. A ex-modelo francesa Inès de la Fressange já usou algumas vezes vestidos longos e rasteiras no próprio Festival de Cannes. Uma Thurman e Cate Blanchett também já cruzaram o tapete vermelho com flats. Fica cool, uma elegância despretensiosa. Uma ideia que funciona muito bem em cidades como o Rio ? diz Gilberto.

Autoridade quando o assunto é elegância e estilo, Gloria Kalil concorda que as mulheres podem ser elegantes e formais usando sapatos baixos. Ela chama atenção para as mil e uma possibilidades que existem nas lojas.

? Não faltam milhares de alternativas. Há sapatilhas e sandálias douradas, prateadas, com pedrarias e cristais. Não é o salto que confere festividade a um sapato. Existem calçados altos e esportivos assim como existem os baixos e sofisticados ? explica.

Para a consultora de estilo, esse código de vestir não faz sentido nos dias de hoje. Gloria acredita que, no Brasil, há uma espécie de auto-imposição para muitas mulheres que o associam a algo sexy.

? Em geral, a brasileira tem uma queda por ser mais sexy. Ela gosta de tudo curto, justo, decotado. Isso vale até para o dia. E aí também entra a história do salto, que é associado à sensualidade. Mas eu não saberia identificar se isso é um problema de machismo.