Cotidiano

Mostra no MAR reúne obras-primas do modernismo brasileiro

RIO ? Carro-chefe da exposição ?A cor do Brasil?, que o Museu de Arte do Rio (MAR)
inaugura na próxima terça-feira, ?Abaporu? (1928), de Tarsila do Amaral, não vai
reinar sozinha sob os holofotes. Ao lado da obra emblemática para a história da
arte brasileira, comprada em 1995 pelo colecionador argentino Eduardo Costantini
e desde então no acervo do Malba, em Buenos Aires, outra pintura do modernismo
brasileiro, realizada na mesma década e também procedente de um país vizinho
latino-americano, promete brilhar na mostra. Trata-se de ?Samba?, uma tela de
quase 2m x 1,60m assinada por Di Cavalcanti (1897-1976). Pertencente ao marchand
uruguaio Martin Castillo, ela será exibida pela primeira vez no Brasil desde que
foi pintada, em 1927. Links artes visuais 28.7

? Somos os 30 primeiros brasileiros a ver essa tela em quase 90 anos ? afirma
solene Paulo Herkenhoff, um dos curadores da mostra, enquanto a pintura,
recém-desembalada, é apoiada numa parede do museu, sob o olhar reverente de
funcionários e museólogos.

?Samba? vai ocupar a mesma parede que ?Abaporu? e ?Antropofagia?, também de
Tarsila, esta emprestada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ao lado, há
três telas de Lasar Segall, entre elas a obra-prima ?Navio de emigrantes?
(1939-41) e ?Encontro? (1924), ambas do acervo do Museu Lasar Segall, também de
São Paulo. É uma forte delegação das artes: cerca de 300 obras, muitas do acervo
do museu, mas a maioria garimpada em instituições e coleções particulares do
exterior e do país. Para reuni-las, Herkenhoff fez um esforço olímpico: longas
trocas de e-mails, numerosas viagens a países vizinhos e outros estados. Apenas
num dia em São Paulo, ele participou de oito reuniões seguidas, com
representantes de diversas instituições e coleções, para negociar a vinda de
obras.

? Estou preparando esta exposição há 40 anos ? diz ele, que assina a
curadoria da mostra com Marcelo Campos. ? A tela de Di Cavalcanti, por exemplo,
foi um longo namoro.

CAÇADORES DE DOCUMENTAÇÃO

A história da obra já era conhecida de marchands do país desde a década de
1980. Na época, quando o mercado de arte internacional ?descobriu? os artistas
latino-americanos, a casa de leilões Christie?s procurou vários negociantes
brasileiros, interessada em informações que garantissem a autenticidade da tela,
que pertencia aos herdeiros do diplomata e escritor mexicano Luis Quintanilla,
lotado no Brasil entre 1927 e 1929. Ninguém a atestou. A obra, portanto, acabou
descartada, considerada falsa.

? Disseram que era impossível, àquela altura, surgir uma tela não conhecida
de Di Cavalcanti, mesmo sem tê-la visto ? conta Castillo, que tomou conhecimento
da pintura há cerca de cinco anos, durante uma feira de arte na Holanda.

Sem documentação que comprovasse a origem e a trajetória da pintura, ?Samba?
havia caído no esquecimento. Castillo participava da feira Tefaf, em Maastricht,
quando foi procurado por uma mexicana. Ela vira obras brasileiras em seu estande
e lhe contou sobre a tela da família Quintanilla. Interessado na tela, ele
procurou os herdeiros do diplomata.

? Quando consegui ser recebido, fiquei uma hora admirando a tela. Do momento
em que eu tomei conhecimento da existência dela, até aquela visita, fiquei
sabendo dos relatos que diziam ser falsa, mas meu coração dizia que era
verdadeira. Era espetacular, tinha muita coisa interessante para ser falsa.
Fiquei impressionado com a cor, a dinâmica, a força que tinha. Estava
emocionado, eufórico ? conta ele.

QUEBRA-CABEÇA

A partir daí, Martin Castillo empreendeu uma verdadeira caçada: contratou
quatro pesquisadores para refazer o percurso de Quintanilla e descobrir
documentos que comprovassem a origem da tela. Ao mesmo tempo, encomendou uma
análise independente, em Miami. Enquanto ela era realizada, as peças do
quebra-cabeça foram se encaixando. Há dois anos, Castillo participava da feira
carioca ArtRio quando uma mulher adentrou seu estande, na ocasião repleto de
desenhos do artista brasileiro. Era Elisabeth Di Cavalcanti, filha do pintor. A
conversa desembocou na tal tela. Ele lhe perguntou se ela teria algum documento
que pudesse comprovar a autenticidade da obra. Elisabeth retornou a ele dias
depois.

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? Fui pesquisar e descobri a revista ?Para Todos?, de 1928, em que a tela
aparece com o nome de ?Samba?, numa reprodução em preto e branco ilustrando um
artigo ? conta ela. ? É até uma ironia que uma tela ?Samba?, pintada por ele,
tenha desaparecido há quatro anos e outra apareça agora.

A ?Samba? a que Elisabeth se refere foi lambida pelo fogo num incêndio na
casa do marchand e colecionador Jean Boghici, em agosto de 2012. A pintura, de
1925, não era a única batizada com esse nome por Di. Há outras, mas nenhuma tão
emblemática e vibrante quanto a destruída. Esta que surge agora ao público
brasileiro foi exibida como ?Carnaval? na Panamerican Week, em Washington
(promovida por Quintanilla em 1955), e tratada pela família do diplomata como
?Mulatos de San Cristobal?.

? É uma história fascinante, que só acontece uma vez na vida ? diz Castillo,
proprietário de uma das mais conceituadas galerias da América do Sul, a Sur,
fundada em 1984 e sediada em Punta del Este.

A tela de Di traz figuras recorrentes em suas obras, como a mulata com seios
expostos, o violeiro e o tocador de pandeiro. Foi comprada diretamente do
artista por Quintanilla. O diplomata era amigo de artistas e intelectuais do
modernismo brasileiro, como o escritor Oswald de Andrade, com quem manteve
correspondência, o ilustrador J. Carlos, o jornalista e dramaturgo Alvaro
Moreyra e Di Cavalcanti. A tela o acompanhou nos postos onde serviu. Durante a
Segunda Guerra, embaixador em Moscou, a manteve enrolada, ao abrigo dos
bombardeios. Carregou-a para Paris e Washington, e finalmente ao México.

?A cor do Brasil? reúne outras obras importantes e
inéditas no Rio, como ?Retrato de Vera Azevedo?. A pintura dos anos 1920 de
Antonio Gomide, um dos artistas da Semana de 22, estará na mesma sala de ?Samba?
e ?Abaporu? (importante ressaltar que a tela de Tarsila fica no Brasil apenas
até o fim de agosto, enquanto a mostra segue até janeiro de 2017). A exposição
reúne também obras dos anos 1960, da Geração 80 e do século XXI.