Cotidiano

Moacyr Luz celebra prêmio e assina canções com João Donato e Martinho da Vila

RIO — Moacyr Luz acorda cedo, às 6h, para compor. Deus ajuda, diz o ditado. Comprovação ou não da ajuda divina, é impressionante a gaveta de inéditas do artista. Mais que o volume, chama a atenção a lista de parceiros. Vai de João Cavalcanti (Moacyr tem um samba-canção com ele no disco novo do Casuarina) a Fátima Guedes (a valseada “Súbita primavera”, que o compositor fez com ela, aparecerá no novo álbum de Leila Pinheiro), passando por Marcos Valle, Paulo César Pinheiro, Hamilton de Holanda, Sereno, Aldir Blanc, Martinho da Vila, Zélia Duncan, João Donato, Hermínio Bello de Carvalho, Moyseis Marques e Luiz Carlos da Vila. Gente de toda idade, de dentro e de fora do samba — gênero mais identificado com a figura de Moacyr nos últimos anos devido ao Samba do Trabalhador, que ele comanda às segundas-feiras há 11 anos no Clube Renascença, no Andaraí.

— Percebi que hoje, respeitando todos os fundamentos, posso fazer uma canção, um samba, o que for — diz o compositor, de 58 anos. — Até porque as distâncias entre os gêneros diminuíram, a própria noção de morro e asfalto se confunde. Hoje é todo mundo morro e asfalto. Tô falando de samba, porque de grana… Pobre é pobre, e rico é rico.

Moacyr explica como vê sua forma própria de pôr morro e asfalto pra conversar em sua música:

— Quando eu comecei a fazer samba, cismei que tinha que fazer com a minha harmonia, meu jeito. Coisas como “Cachaça, árvore e bandeira”, “Anjo da Velha Guarda”, “Pra que pedir perdão?” (todas com Aldir Blanc). Hoje percebo que aquilo foi aceito, vejo garotos compondo seguindo isso — diz Moacyr, detalhando mais seu estilo. — Não tenho nada contra bateria, mas não lembro de ter bateria em meus discos. É porque sou tímido demais para aquele volume. Meu samba é mais cadenciado. “Cabô meu pai” talvez seja a que mais contraria isso, mas no fundo talvez ela venha mais de Ary Barroso que de Candeia.

O artista diz que costuma se moldar ao parceiro (“quando eu componho com Martinho, eu viro o Martinho”). João Donato comprova:

— As letras dele falam de coisas que eu pensava que só eu sabia a meu respeito: sanfona de oito baixos, Debussy, “Tenderly”…

Parceiro recente de Moacyr, João Cavalcanti faz sua leitura do compositor:

— Você tem dois caminhos frente às diferenças. Um é sublinhar o sectarismo, fazer disso bandeira de batalha. O outro é criar conexões, pontes. Moa é um dos grandes construtores de pontes, ao mesmo tempo em que tem um trânsito pleno no universo do samba. É absolutamente sofisticado.

A aceitação do jeito aberto de Moacyr fazer samba — e sair dele quando quer — tem outros atestados. O sucesso do Samba do Trabalhador é o mais evidente. Em novembro, sai pela Universal o DVD que eles gravaram em São Paulo, no bar Pirajá — com convidados que reafirmam o jeito Moacyr, lista formada por Zeca Pagodinho, Teresa Cristina, Rildo Hora, Leila Pinheiro e Ricardo Silveira. E, no fim de junho, o Samba do Trabalhador — que já virou tema de livro (“Segunda-feira: A história do Samba do Trabalhador”, de Daniel Brunet) — ganhou o troféu de melhor grupo de samba no Prêmio da Música Brasileira. Na cerimônia no Teatro Municipal, ao lado dos “meninos” — alguns mais velhos que ele — da roda de samba, o compositor conta que olhou em volta e deu a dimensão da premiação aos colegas menos experientes (Moacyr já ganhara em 1989, com “Coração do agreste”, sua com Aldir, e em 2012 fora indicado como melhor canção por “Zoeira”, com Hermínio):

— Eu disse aos meninos: “Isso aqui é coisa séria. Tá vendo aquela ali? É a Gal. Aqueles dois ali? Chitãozinho e Xororó. Tudo pica” — lembra Moacyr. — Quando perdemos o prêmio de melhor disco de samba (Zélia ganhou), todos os meninos olharam para mim com aquele olhar de 7 a 1. Logo depois ganhamos o de melhor grupo. Na segunda-feira seguinte, me emocionei quando Bira Presidente (do Fundo de Quintal, que concorria com eles) foi ao Samba do Trabalhador e disse que o prêmio era nosso por merecimento e que isso representava uma renovação importante na música brasileira.

Outro atestado recebido por Moacyr foi o Estandarte de Ouro pelo samba-enredo sobre Candeia (parceria dele com Teresa Cristina e Cláudio Russo) para a Renascer de Jacarepaguá, em 2015.

— Tinha tentado em 1997, na Mangueira. Fui finalista, mas disseram que o samba era muito longo. Na época, pensei: “Pô, se é longo, canta menos vezes na avenida, em vez de 50 vezes ele vai repetir só 40” — brinca Moacyr. — Mas depois entendi a lógica daquilo, o prejuízo que um samba longo pode trazer à harmonia da escola.

A roda de samba do Renascença carrega também a cara dele — a ideia de renovação levantada por Bira não foi conversa vazia. O espaço, democrático por natureza, frequentado por sambistas e artistas da MPB, por suburbanos e leblonianos, é dos mais receptivos ao lançamento de novos sambas e à formação de parcerias — como a de Moacyr com Sereno, do Fundo de Quintal, seu parceiro mais frequente hoje.

— Marquinhos Diniz esteve lá e resumiu isso bem: “Sei que é o maior perigo mostrar samba novo em roda, mas o astral aqui permite”. E cantou uma nova do Trio Calafrio (Diniz, Barbeirinho do Jacarezinho e Luiz Grande) — conta Moacyr. — E os integrantes do Samba do Trabalhador estão lançando seus trabalhos próprios. Mingo Silva está finalizando o disco dele, Nego Álvaro vai lançar pela Coqueiro Verde, Alexandre Marmita fez o dele…

O leque de parcerias se revela nos trabalhos recentes, em que aparece como compositor ou convidado. Eles incluem candidatos à lista dos mais vendidos, como o DVD “Quintal do Pagodinho 3”, previsto para o fim do ano, e muitos artistas da nova geração, como Renata Jambeiro, Aline Calixto, Marina Iris e Casuarina. Nos próximos meses sai o DVD do “Dobrando a Carioca” — do quarteto formado por ele, Guinga, Jards Macalé e Zé Renato. Atualmente, Moacyr tem investido em parcerias com poetas.

— Tenho gostado do desafio de fazer músicas sobre poemas. Tem duas coisas nesse sentido para sair em breve. Com o gaúcho Carlos di Jaguarão, fiz o “Cartas africanas” (o disco, apenas com parcerias da dupla, investiga a presença da cultura afro-brasileira no Sul), que tem músicos como Bebê Kramer e Nicolas Krassik. E com o Rogério Batalha fui compondo canções que acabaram virando “Cabaré de asfalto”, um espetáculo com dança, música e poesia com a cantora Viviani Godoy.

Moacyr — que planeja álbum solo no início de 2017 para pôr para a rua um punhado das inéditas de sua gaveta — não consegue muito bem traçar de onde vem sua natureza de agregar pela música, se do samba ou de fora dele. Só se guia por uma certeza:

— Minha função é compor.