Cotidiano

Milton Hatoum, autor do romance 'Dois irmãos', debate a adaptação para a TV

DoisIrmaos.jpgRIO – Autor de ?Dois irmãos?, romance de 2000 (premiado com o
Jabuti no ano seguinte), Milton Hatoum conta que não o lê há 16 anos. Já Maria
Camargo, roteirista da minissérie homônima que estreia na Globo em 9 de janeiro, no horário das 23h,
contabiliza 26 leituras dessa obra, que se passa entre as décadas de 1920 e
1980, de forma não linear, e acompanha a trajetória dos gêmeos Omar e Yaqub
(vividos, em diferentes fases, por Lorenzo e Enrico Rocha, Matheus Abreu e Cauã
Reymond) e a relação de cada um com a mãe, Zana (Gabriella Mustafá/Juliana Paes/
Eliane Giardini). O enredo é narrado por Nael (Theo Kalper/ Rian Cesar/ Irandhir
Santos), filho de Domingas (Sandra Paramirim/ Zahy/ Silvia Nobre), empregada
índia da casa.

? É uma história de muitos sentimentos, de relações
humanas, a única verdade da literatura. História de afetos, conflitos,
sentimentos. É o meu romance menos autobiográfico. Eu armei aquilo, pensei
naquilo e meti a Maria naquela história (risos) ? brinca o autor
manauense.

Maria, que é roteirista da Globo e trabalhou no ?Linha
direta? e no ?Sítio do pica-pau amarelo?, comprou os direitos do livro em 2004
e, desde então, tinha na cabeça a ideia de levá-lo ao cinema ou à televisão.
Quando conheceu Hatoum, numa Bienal do Livro há alguns anos, contou-lhe o
projeto. O autor, no mesmo instante, assentiu. E fez questão de não dar pitaco
no roteiro, dirigido por Luiz Fernando Carvalho (que trabalhara com Maria em
?Correio feminino?, quadro do ?Fantástico?).

? Eu não quis dar ideias. Não era bom. Depois de terminar um livro longo,
você está exausto. As pessoas perguntam por que eu não fiz roteiro. Porque é
difícil. E por que eu faria? Por vaidade? Não tem sentido ? diz Hatoum.

A convite do GLOBO, os dois trocaram impressões sobre o romance e a sua
transposição, finalmente, para a tela ? o projeto começou a nascer em 2010 e foi
gravado em 2014.

O COMEÇO DE TUDO

Milton Hatoum: Comecei a pensar no livro quando li ?Esaú e
Jacó?, que considero um dos grandes romances de Machado de Assis, mesmo sendo um
dos menos lidos. Ali, havia um embate que, no fundo, era entre monarquia e
república, com um fundo político machadiano. Pensei nessa ideia por mais de dez
anos, até que um tempo depois, quando desisti de publicar um outro romance, me
entreguei a esses irmãos. Já tinha na cabeça o confronto armado, o drama
familiar, a paixão da mãe por um dos filhos, o Omar, a escolha, essa coisa de
São Paulo, Amazonas, o Sudeste e o Norte. Antes, escrevi sobre os personagens, o
que queria deles e a relação do narrador com cada um. E sou racionalista, então
tenho que saber aonde vai dar. Por isso, o livro começa pela morte da Zana, o
que não acontece na série. Mas a travessia é na escuridão. Acho que o roteiro de
TV aproveitou bastante (material do livro), Luiz e Maria respeitaram o
texto e não o mutilaram de forma alguma, ao contrário. Se algumas passagens
foram extraídas, muitas outras foram acrescentadas.

Maria Camargo: Depois de ler e estar com as sensações
claras, desmembrei tudo o que era mencionado. Fiz fichas para cada situação e as
coloquei em ordem cronológica, já que a história não é linear. E eu não queria
ir contra a natureza do livro. Então criei uma espécie de prólogo e fiz outras
fichas, com passagens que eu acrescentaria ao roteiro. Desembaralhei tudo e
embaralhei novamente, peguei a história como um todo e desmembrei em dez
capítulos.

MOMENTO DE RUPTURA

Hatoum: Escrevi o livro em um momento de crise. Em 1997,
abandonei minha cidade, família, um longo casamento, um emprego estável num país
instável. Eu me arrisquei e fui para São Paulo só querendo escrever. Olha que
loucura, eu era professor universitário, e a universidade é tão burocratizada
que não há mais tempo para um professor ler e escrever. Eu queria tempo, estava
amargurado.

Maria: Quando li, estava num momento de ruptura também. Eu
era roteirista, mas o que eu escrevia não dizia respeito às minhas questões e
motivações. O livro mexeu comigo de uma forma que não foi normal, procurei o
analista e falei: ?O que me traz aqui é um livro??. Logo depois me separei,
foram vários rompimentos, mas eu sabia que precisava contar aquela história,
tornou-se uma obsessão, queria aqueles personagens. Conheci o Milton, que
apostou em mim.

PROCESSO LONGO

Hatoum: Primeiro seria um filme, com roteiro e produção da
Maria. A minissérie teve seu tempo também, anos de silêncio e angústia, mais
quatro de zigue-zague, desse vai e volta.

Maria: Comecei a conversar com o Luiz em 2010, gravamos em
2014, e o mais impressionante é que quanto mais tempo passou, mais relevante a
história se tornou. No filme, não daria para contar tantos anos em 120 minutos.
Os personagens estão envolvidos dentro de um contexto histórico. É a história
dessa Manaus, desse Brasil, onde o futuro parecia bonito. Yaqub fala muito sobre
o futuro, e Nael diz: ?O futuro, essa falácia que persiste?. Isso é muito atual.
Foi você que escreveu, Milton!

Hatoum: Li o roteiro, que não é mais o meu romance, e acho
que você e o Luiz Fernando aprofundaram o quadro histórico, com as questões
sociais existentes. Acho que o romance servirá de reflexão sobre muitas coisas:
o renascimento do fascismo, os nostálgicos da ditadura, essas pessoas que não
têm qualquer discernimento sobre a História recente; vai servir para pensar nas
nossas cidades, o desastre que foi essa modernidade manca, postiça, esse afã da
modernidade nos anos da ditadura, com a construção de espigões… O Grande Hotel
de Belém, no centro da capital, que foi derrubado… até chegar no La Vue, o
Lavuelania (ele pronuncia lavilania).

MANAUS

Maria: O Milton me apresentou à cidade e tive um surto,
comecei a chorar. Não tenho relação alguma com igreja, não tenho religião, mas
quando entrei na Nossa Senhora dos Remédios, me senti como a Zana, pensei ?olha
o que ela fez, todas as escolhas erradas…?, senti a tragédia da personagem
andando por ali. Você me levou para lá, Milton. E para onde eu te levei?

Hatoum: Já há uma espécie de criação coletiva, não é mais o
meu romance. O filme (a minissérie) partiu do romance, mas há muita
cumplicidade, é muito promíscuo (risos).

Maria: Fazemos aniversário no mesmo dia, 19 de agosto. E os
gêmeos nasceram em agosto, também… segundo você…

Hatoum: Eu nem lembrava, ela sabe tudo de cabo a rabo
(risos).

PERSONAGEM PRINCIPAL

Maria: Zana é a protagonista. Se ela não tivesse escolhido
aquele filho… mas é para além da escolha, ela se apaixona, protege aquele
bebê. E Omar é um sedutor. Zana leva a gente para muitos lados, e sem ela não
teria história.

Hatoum: A paixão é o desequilíbrio, o pathos para
os gregos é a catástrofe. É a presença muito forte do conflito, que desemboca no
trágico; o romance realista é isso, uma história de vida que não dá certo. É
muito estranho ver tudo isso na tela. Lembro que o João Cabral de Melo Neto
disse que não conseguia mais dissociar ?Morte e vida Severina? da música do
Chico Buarque. Isso é inexorável. Agora o romance estará ligado a esses rostos
que veremos na tela.

ALCANCE

Maria: Se as pessoas não chegarem ao livro, que cheguem ao
universo do Milton, a tamanha sofisticação. É uma raridade na TV aberta.

Hatoum: O livro vendeu 170 mil exemplares, o que é muito.
Mas o alcance da TV é de milhões. A esperança é que gostem. Depois, eu acho que
os espectadores muito viciados só num tipo de filme vão se desintoxicar. É como
um leitor que se desintoxica dos best-selles, aquele que sai do ?Cinquenta tons
de cinza? para ler um Lima Barreto. Acho um avanço da civilização (risos).