Cotidiano

Miguel Cardina, historiador: 'Na internet, as memórias estão vivas'

“Nasci em Nazaré, uma linda praia no litoral português. Aos 17 anos, fui estudar em Coimbra e por lá fiquei, agora a trabalho, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Tenho uma segunda vida como músico. Toco bateria e já vou lançar um terceiro disco com a minha banda, Diabo a Sete. A História me fascina.”

Conte algo que não sei.

Em Portugal, na memória coletiva dominante sobre a guerra colonial portuguesa, que culminou com um golpe militar para instaurar a democracia no país, em 1974, a dimensão da violência é quase inexistente. Há a ideia de colonialismo brando, mais benigna, menos violenta. No fundo, uma ideia lusotropicalista, esquizofrênica.

A memória coletiva se tornou o seu objeto de estudo?

Uma das linhas que pesquiso, e gosto, é o colonialismo português. E nada mais significativo para contar a História do que a memória sobre a guerra. A intenção não é ver como a guerra foi entre 1961 e 1974, mas entre 1974 e 2016. Como é recordada, falada, invocada, patrimonializada, às vezes esquecida e silenciada. São as representações desse passado no presente. Vou iniciar um projeto de comparação dessas memórias em Portugal, Angola, Guiné-Bissau, onde ocorreu de fato a guerra, e em Cabo Verde, que sofreu com as consequências do colonialismo. Temos diferentes memórias sobre esse fenômeno, e pretendo colocá-las em diálogo.

Memórias individuais?

Podemos conjugá-las em três dimensões: as do Estado, da sociedade civil e do indivíduo. Buscar entender como o Estado recorda a guerra, quais foram as políticas de reparação, de compensação aos combatentes, as leis que foram criadas, monumentos levantados e qual a linguagem deles. Ver como a sociedade civil se recorda, as associações de ex-combatentes. E temos as memórias individuais, os testemunhos escritos e as memórias digitais.

A internet é capaz de formar memórias?

Ela possibilita que as pessoas tenham um espaço de relativização do seu passado, para colocarem a sua história, de diálogo. Redes sociais e blogs se transformaram também em espaços de disputa dessa memória, porque permitem a troca, o comentário, o que um livro testemunho dificilmente permitirá. Na internet, as memórias estão vivas. Um passado com dimensões traumáticas, fortes, precisa ser discutido.

Sobre a História de Portugal, você fala do golpe militar para instaurar a democracia. É uma contradição?

Essa é uma originalidade portuguesa, eu diria (risos). Realmente, os militares fizeram uma revolução, por meio de um golpe, para instaurar a democracia. Setores das Forças Armadas conduziram a derrubada da ditadura. Salazar já não estava mais no poder, mas toda a política colonialista e a repressão permaneciam. Durante um ano e meio, Portugal teve uma revolução de cunho socialista suscitada, em última análise, por um golpe militar. Em 1975, tem origem um processo de normalidade democrática.

Qual a imagem e a memória portuguesa sobre os militares?

A imagem da instituição militar é muito mais plural e complexa. Eles produziram a guerra ? e a violência. Mas, também, desencadearam a mudança política. Todo processo revolucionário é um processo de confronto entre as diferentes forças sociais e políticas. Há uma história de pluralidade interna, e isso faz com que a imagem seja mais heterogênea do que em outros países que passaram por ditaduras e golpes militares, como o Brasil.

Qual a memória mais forte?

Não sei se é a mais forte, mas é a que estimo muito: a de sentir os pés na areia quente da praia. Cresci com esse contato. E não há forma de recuperá-lo. Nem voltando a meter os pés na areia quente da praia.