Cotidiano

Migrantes ilegais são explorados em situações análogas à escravidão

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CATÂNIA E SIRACUSA, Itália – O sudanês Mustafa Said, de 29 anos, espera ansioso o período de colheita de tomates na costa oriental da Sicília, na Itália. Ele não tem onde morar e vive como nômade, migrando de lavoura em lavoura no rastro das safras. Está agora acampado num terreno cujo proprietário desconhece ? seu contato é com um atravessador, a quem se refere por ?patrão? e descreve como o ?dono? dos trabalhadores. No pico da safra, a fazenda mantém mais de 200 homens em situação análoga à escravidão, todos estrangeiros. A exploração de refugiados e migrantes é a nova face da economia do Mediterrâneo. CARRANCA DIA 2

Há outra, ainda: a das ruas. A reportagem encontrou dezenas de refugiados e migrantes dormindo nas ruas e mendigando nos faróis de Catânia, Palermo, Messina, Trapani, Siracusa, vítimas de políticas adotadas pela União Europeia (UE) no último ano, que estão jogando milhares na clandestinidade.

Mustafa dorme numa precária barraca de plástico; outros, ao relento. Não há eletricidade, água potável ou esgoto no acampamento improvisado pelos trabalhadores; o banheiro é a terra. As condições de estadia e na lavoura são desumanas. Saem antes do amanhecer, por volta de 4h, e só retornam após o sol se pôr. Na Europa de Mustafa, as condições de vida parecem com as do país de onde fugiu.

? A diferença é que aqui não tem guerra, o resto é mais ou menos igual ? diz. ? Se conseguisse trabalho contínuo, a vida melhorava. Porque na minha terra (uma aldeia na fronteira entre Sudão e Sudão do Sul) também isso não tem. Aqui só consigo trabalho na colheita. Quando termina, acaba o dinheiro. Então, eu migro para outra lavoura, e outra. Desde que cheguei, não consegui deixar essa vida.

A mãe de Mustafa morreu, o pai e os irmãos mais jovens ficaram para trás ? refugiar-se exige dinheiro. Somente ele e outro irmão migraram, ambos estão nas mãos de intermediários que selecionam trabalhadores para as lavouras do Sul da Itália: Sicília, Calábria, Puglia, Campânia.

? Negros fortes, feito eu e meu irmão, têm mais chance, porque aguentam mais horas e carregam mais peso ? conta Mustafa.

Nas raras vezes em que conseguem juntar algum dinheiro, enviam o montante para a família no Sudão. Mustafa não tem coragem de dizer ao pai que o sonho da Europa se transformou em pesadelo. Não poder mandar ajuda a eles lhe tira o sono.

? É uma grande fonte de estresse psicológico para essas pessoas, porque os familiares acreditam que os que migraram estão melhor de vida e os pressionam para que enviem dinheiro. Muitas dessas famílias investiram tudo para mandar o filho à Europa ? afirma o padre Carlo Dantom, que abriga em sua igreja, em Siracusa, refugiados e migrantes excluídos do sistema de proteção italiano.

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Paróquia na Sicília já acolheu 20 mil

Mais de 20 mil, a maioria ilegal, passaram pela casa mantida com doações nos fundos da paróquia.

A maioria dos que se sujeitam à exploração não tem documentos regulares. Muitos tiveram o pedido de asilo recusado. A ONG Oxfam estima que mais de cinco mil migrantes, principalmente do Norte e Oeste da África, receberam a carta de expulsão desde setembro de 2015, quando a UE adotou nova política de registro de migrantes e refugiados, na tentativa de excluir aqueles que buscam asilo por questões econômicas, embora isso contrarie leis internacionais. O documento determina que deixem o país em uma semana, ainda que as autoridades saibam ser improvável que obedeçam. Mas mesmo que quisessem, como Mustafa, eles não têm dinheiro para voltar para casa. Mais de 90% deles caem na clandestinidade ? e na teia de criminosos que lucram com o trabalho escravo e as ruas.

? A polícia, as autoridades, os empregadores, todos sabem que eles não têm papéis. Mas fazem vista grossa porque a ilegalidade é uma forma de controle sobre eles ? critica o padre Carlo. ? O uso de ilegais barateou os custos da produção. São eles que hoje sustentam a agricultura mediterrânea.

Mustafa recebe pelo que colhe. A colheita do tomate, base da culinária italiana e dos molhos para exportação, é a que melhor paga: ? 6 por contêiner de 200kg, no caso dos tomates pequenos, e ? 3, dos maiores. Quem pesa é o ?patrão?, e Mustafa não tem alternativa, se não confiar nele. Os atravessadores protegem os donos de terra de processos por trabalho escravo, embora seja improvável que um ilegal consiga ingressar com ação por direitos na Justiça.

? Esta é a face secreta da economia italiana ? lamenta o padre Carlo. ? Eles não têm direito a nada, porque são invisíveis ao sistema. Perderam o link com a sociedade. Desconhecem seus direitos, estão confusos, amedrontados, vivendo escondidos. É a mão de obra perfeita para exploração.

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O dinheiro que Mustafa recebe não dá para moradia, por isso dorme na lavoura. Entre as safras, faz bicos de pedreiro, mas normalmente é forçado a complementar o orçamento mendigando.

Já Hamza, 26 anos, fugiu da Somália após um carro-bomba explodir junto ao pequeno comércio da família em Mogadíscio. O prédio desabou. Como muitos que fogem do Chifre da África, cruzou 9.675km em ônibus, caminhões e a pé numa jornada de 18 meses por Quênia, Uganda, Sudão do Sul, Sudão e, pelo deserto, até a Líbia. Em cada parada, fazia bicos para custear o próximo trecho.

Na Líbia, acabou em uma prisão em Gharyan, cerca de 80km de Trípoli, da qual escapou num levante. Foi recapturado, agora por contrabandistas, e colocado numa casa cuja localização desconhece.

? Eles queriam US$ 3 mil por minha libertação. Se não conseguiam falar com minha família, me batiam até eu desmaiar.

Quando viram que a família não mandaria o dinheiro, soltaram-no. Hamza diz que seguiu sem destino até se esconder na boleia de um caminhão. Assim chegou a uma fazenda. Trabalhou na lavoura por quatro meses, pelos quais recebeu 500 dinares (R$ 1.180), dinheiro com que pagou a travessia de barco de Sabara, na costa líbia, para a Sicília. Em Catânia, fez bicos para pagar a viagem de ônibus a Munique, na Alemanha, onde ficou por dois anos.

Há seis meses, foi colocado num avião e deportado de volta a Milão, com base na Convenção de Dublin. O sistema italiano lhe dá abrigo até que o pedido de asilo seja processado. Depois disso, perde a proteção. Hamza passou a viver nas ruas de Catânia com dois amigos somalis. De dia, perambula pelas proximidades da estação de trem, onde contrabandistas costumam recrutar estrangeiros para a lavoura ou mercado informal.

Convenção de Dublin obriga a pedido de asilo no país de chegada

A Convenção de Dublin, de 2013, prevê que pedidos de asilo só podem ser feitos nos países de chegada. Em setembro, agência da UE para controle de fronteiras (Frontex) passou a colher ainda nos portos as impressões digitais. Isso tem mantido milhares na Itália, principal entrada dos que tentam chegar à Europa, após acordo da UE com Turquia, que prevê deportação dos que chegam pela Grécia.

A nova política foi justificada sob promessa de que ao menos 160 mil seriam realocados para outros países da Europa. Mas, até o primeiro semestre, pouco mais de 800 foram realocados da Itália. Somente este ano, mais de 112 mil pessoas chegaram ao país pelo mar, segundo a Organização Internacional para as Migrações. E eles continuam chegando ? dez mil novos na última semana.