Cotidiano

Martín Caparrós viaja pelo mundo para contar histórias de vítimas da fome

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RIO – Em uma aldeia no Níger, no oeste da África, o argentino Martín Caparrós conheceu Aisha, uma mulher de trinta e poucos anos que se alimentava com uma bola de farinha de milho ?todos os dias que posso?. Jornalista experiente em dramas sociais, Caparrós perguntou a ela o que pediria a um mago se tivesse direito a um desejo. ?Uma vaca?, respondeu Aisha, e quando Caparrós insistiu que poderia escolher qualquer coisa, ela disse: ?Duas vacas. Com duas, sim, eu nunca mais teria fome?.

A história de Aisha é o ponto de partida do livro ?A fome? (Bertrand Brasil), ambiciosa mescla de reportagem, ensaio e manifesto que Caparrós construiu ao longo de seis anos, em viagens por países da África (Níger, Sudão do Sul, Madagascar), da Ásia (Índia, Bangladesh) e da América (Argentina, EUA). Em cada lugar, encontrou diversas definições de ?fome?. Por trás de todas, porém, uma mesma lógica: um planeta que produz alimento suficiente para toda a população, mas ainda assim deixa quase 1 bilhão de pessoas desnutridas, porque ?alguns de nós concentramos recursos de tal modo que muitos ficam sem nada?, diz Caparrós, por e-mail.

O senhor diz que decidiu fazer um livro sobre a fome ?porque, se não fizesse, não me suportaria?. Como esse tema surgiu em sua vida?

INFOCHPDPICT000059989312 (2)Escrevo reportagens sobre temas sociais e políticos há muitos anos, em muitas partes do mundo, e sempre notei que, por trás de cada um dos problemas que analisava, havia um que se repetia como pano de fundo, quase invisível: o fato de que muitas pessoas não tinham comida suficiente. Olhando melhor, me parecia mais e mais vergonhoso: o fato de um mundo que produz comida suficiente para 12 bilhões de pessoas deixar quase 1 bilhão delas sem alimentos é uma grande canalhice. Por isso, decidi trazer o pano de fundo para o primeiro plano e escrever um livro sobre a fome. Mas era difícil, porque ?a fome no mundo? é um clichê sobre o qual todos sabemos o que queremos saber ? e que nunca é muito. Para não cair no lugar-comum, entendi que não existe ?a fome?, e sim pessoas ? centenas de milhões de pessoas ? que passam fome, e eu queria escutar algumas delas.

Como o contato com essas pessoas mudou sua compreensão do drama da fome?

Não sei se mudou, eu diria que aprofundou, trouxe novos matizes. Seria uma bobagem pensar que todas as pessoas que passam fome pensam e sofrem da mesma maneira. Quis deixar de lado a facilidade de converter as pessoas em números, e encará-las como são. Muitas histórias me impressionaram: uma mulher em Daca, a capital de Bangladesh, me contou que, quando não tinha comida suficiente para os filhos, colocava uma panela com água no fogão, enchia de pedras ou galhos, e dizia para as crianças dormirem um pouco, que ela as acordaria quando o jantar estivesse pronto… Assim os garotos dormiam tranquilos. Não quis perguntar como ela fazia para o truque funcionar depois de duas, três, dez vezes. Acho que, ao menos nessa ocasião, preferi não saber.

?A fome tem muitas causas, mas a falta de comida não é uma delas?, o senhor escreve. E afirma que os casos mais graves de fome hoje ?são causados pelas mãos de algum homem? ou por ?uma decisão do poder?. Se o planeta produz alimento suficiente para todos, por que a fome persiste em tantos lugares?

É importante não confundir fome com hambruna (termo espanhol que significa uma crise humanitária de fome em larga escala). Hambruna é o estado de emergência em que algum acidente ? guerras, tragédias, secas ? faz com que muita gente não tenha acesso à comida. Isso, por sorte, já não é tão frequente. Por sua vez, a fome é a privação sistemática que sofrem 800 milhões de pessoas em todo o mundo que, dia após dia, não comem o suficiente. As razões são múltiplas, mas, sintetizando muito: porque alguns de nós concentramos os recursos do planeta de tal modo que muitos ficam sem nada. O planeta produz o suficiente para todos, só que o sistema econômico e comercial global está armado para prover os mais ricos ? e deixar de lado os mais pobres.

Como avalia a ajuda humanitária aos países que enfrentam crises de fome?

Nas emergências, a ajuda humanitária é útil e eficiente. O problema é manter essa política assistencial nos processos de longo prazo: prover infraestrutura necessária ? terras, irrigação, máquinas, sementes, depósitos, estradas ? para que todos possam comer sem necessidade de receber bolsas da Europa ou dos EUA, sem depender das decisões de outros.

O livro narra o aumento de preços dos alimentos a partir da crise de 2008 e os conflitos por comida nos últimos anos em países como Egito, Burkina Faso e EUA. Que novos conflitos podem ocorrer por causa de alimentos?

Essa crise foi uma amostra do que pode acontecer quando os preços dos alimentos sobem bruscamente: a Primavera Árabe, conflitos violentos ou não violentos em cerca de 50 países. Diz-se que podem acontecer guerras por água ou comida, sem pensar que essa guerra existe desde sempre e está aqui o tempo todo. O que acontece agora é que um dos lados da guerra ? os países ricos, os habitantes ricos dos países pobres ? estão vencendo com tanta vantagem que não precisam de operações militares. Para centenas de milhões de pessoas, isso que chamamos de paz é a aceitação da derrota. E eles pagam por essa derrota um preço muito alto: a desnutrição.