Cotidiano

Maria Luiza Barreto, historiadora e psicanalista: 'O deus de Canudos não era vingativo'

“Sou carioca. Fiz História na UFRJ, mestrado na USP, casei-me com um executivo francês e fui morar fora. Lá, fiz formação psicanalítica e depois dediquei doze anos a estudar os manuscritos de Antônio Conselheiro para minha tese de doutorado, que acabo de defender na universidade Paris 7, Sorbonne, e ser aprovada.”

Conte algo que não sei.

Vou contar duas, que vão contra a tradição sobre Canudos. Primeira: Antonio Conselheiro não era analfabeto. Seus manuscritos são de próprio punho. A segunda: era psicótico, mas não paranoico. Seu traço marcante era a melancolia.

Como descobriu?

Mandei fazer três análises grafológicas dos manuscritos. E comparei a bilhetes autênticos por ele assinados, de grafia diferente da de seu secretário, Leão de Natuba. E me vali da antropologia psicanalítica, que utiliza Freud e Lacan para entender o sujeito de um texto.

Quais as consequências dessas descobertas?

Conselheiro valorizava o saber de maneira extraordinária. Promovia a educação das crianças em Canudos, meninos e meninas, o que era revolucionário. Teve uma educação formal como de todas as pessoas que podiam estudar em Quixeramobim, como João Brígido dos Santos, seu primeiro biógrafo.

E no aspecto psíquico?

A significação histórica da sua liderança, de que era um louco paranoico com uma massa manipulável que ele levou ao desastre, vai por terra. Ao contrário, ele ficava grande parte do tempo incomunicável, no santuário. Isso permitiu que muitas lideranças surgissem. Os sertanejos se organizaram em torno dele, como de um pai morto, mas não numa adoração enlouquecida, de morrer por causa dele.

Mas morrer por uma causa.

Eles lutaram porque chegavam lá, cada um recebia um pedaço de terra. No sertão, nem hoje existe isso, imagina naquela época!

O ópio do povo do bem?

Não, porque morreram todos. A religião não faz um bom casamento com as coisas temporais, por mais que durante quatro anos Canudos tenha sido a segunda cidade de Bahia, depois de Salvador. Começaram a plantar feijão, milho, escravos libertos, sertanejos, indígenas, pessoas que dependiam do proprietário de terra que não plantava nada, era tudo criação. Começaram a comerciar, a crescer…

O que deu errado?

O que aconteceu lá foi que, não sendo político, ele não conseguiu dialetizar as consequências de suas ações. Negociar com o governo, com os proprietários… Ele ficou parado na sua posição. E eles resistiram a três investidas antes do massacre.

O que achou no inconsciente revelado pelos textos?

Foi possível localizá-lo como sujeito. Não é um discurso de que amanhã vai acabar o mundo. Ao contrário. Há um momento em que ele, ao mencionar o dilúvio, diz que as águas foram subindo bem aos poucos para que as pessoas tivessem tempo de se converter. O deus de Canudos não era vingativo. Não o deus de um paranoico, o da destruição…

Um deus que destrói homeopaticamente…

(Risos) Pode-se também ler com clareza a nota melancólica forte, corroborada por um fato na vida dele que jamais havia sido considerado: a morte da mãe quando ele tinha quatro anos e meio. Depois, teve uma madrasta de livro, que o maltratava e morreu doida. A questão da mãe está articulada nos manuscritos. O segundo começa com a história de Jesus contada por Maria… A subjetividade da mãe. Há também o pai, que bebia, e esfaqueou a madrasta, e a obsessão de Conselheiro com São Francisco de Assis, suas chagas e seus impulsos de restauração.