Cotidiano

Mães guardam a placenta para comer, enterrar ou emoldurar

SÃO PAULO – Placenta pode ser plantada, ingerida em cápsulas e até virar obra de arte. O órgão humano desenvolvido especialmente para nutrir o feto durante os nove meses de gestação antes era descartado como lixo hospitalar. Agora, vem sendo reivindicado por famílias após os partos. Polêmicas e eventuais carinhas de nojo à parte, hospitais e profissionais de saúde já estão se adaptando a esta crescente demanda. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não tem uma norma federal sobre como a placenta deve ser armazenada e diz que o paciente tem direito sobre o órgão, desde que não esteja infectado. Mas alerta que a placenta é um material de fácil putrefação e pede atenção a pais e médicos ao guardá-la e manuseá-la.

Em São Paulo, o grupo São Luiz criou um protocolo de armazenamento: se os pais pedirem, o órgão após ser expulso durante um parto normal ou retirado numa cesárea vai para uma sala especial refrigerada e é levado para casa quando a mulher tem alta; depois, a responsabilidade é da família. No Rio, a Casa de Saúde São José dispõe de um ?placentário?, ambiente onde o órgão é mantido, caso a família queira, até a alta.

? Fico feliz em ver a mentalidade das pessoas mudando. Ficar com seu material biológico é um direito da paciente, e no momento em que as mulheres percebem que a placenta é um órgão de vida, estão querendo criar uma memória ? atesta a ginecologista paulistana Carolina Maia, de 35 anos, que enterrou em seu jardim as placentas de Martin, há dois anos, e a de Tito, nascido há três semanas, num plantio acompanhado pelo GLOBO.

64789719_PA Exclusiva São Paulo SP 08-02-2017 Prática de comer placenta está se espalhando.jpgCarol não quis provar a placenta, como fizeram a atriz Fernanda Machado, a historiadora carioca Ynae dos Santos e a advogada paulistana Mariana Rocha. Enquanto Fernanda e Ynae transformaram a placenta em cápsula, Mariana foi além: comeu pedacinhos do órgão após passar pelo parto natural de sua terceira filha, realizado em casa.

? Nenhuma experiência na vida te mostra tua força como um parto natural. Estava ali após parir, a médica que me acompanhou foi à cozinha, cortou a placenta em pedacinhos, tipo um sushi, acho que pôs um tempero, e me ofereceu. Tem gosto de carpaccio, só que mais ferroso ? conta Mariana, que sabe que este tipo de assunto ainda é tabu em muitas rodas. ? Acho que muita gente associa a um certo canibalismo, mas esquece o que é a vida, como ela se forma. Sem placenta não há vida. Sou uma mulher capaz de parir um filho sozinha e assumo responsabilidade pelos meus atos.

COMBATE À DEPRESSÃO

Apesar de não haver estudos científicos que comprovem, acredita-se que ingerir a placenta, seja em cápsulas ou in natura, ajuda na reposição de ferro da mulher e evita a depressão e a queda de cabelo após o parto, além de aumentar a produção de leite e auxiliar na perda de peso. A nutricionista Bela Gil e a socialite Kim Kardashian seguiram esta linha e falaram publicamente sobre o assunto. A Anvisa ?orienta que a utilização de produtos terapêuticos de origem humana sem os devidos critérios de qualidade, segurança e sem o reconhecimento da sua eficácia clínica configura risco iminente à saúde?.

A atriz Fernanda Machado, que atualmente mora nos Estados Unidos, conta que lá a prática é bastante comum, realizada por doulas na casa da família e com vários critérios de higienização.

? Não há dúvida de que a placenta está cheia de nutrientes. Acreditando nisso, eu me sentia melhor quando tomava as cápsulas diariamente, parecia que dava uma certa equilibrada nos hormônios. Sei que pode ser tudo efeito placebo, mas achei a experiência muito benéfica ? conta Fernanda, que tem um canal no YouTube onde conta sua experiência com o nascimento do filho Lucca, há quase dois anos.

fernandamachado.jpgYnae e várias mães ouvidas pelo GLOBO contam que não tiveram problemas em levar suas placentas para casa.

? Pedi ao médico e deixei na geladeira do quarto. Achei uma moça no Rio que encapsulou para mim e ainda fez um quadrinho com a parte do cordão umbilical que ficou pendurada. O sangue seca e forma como se fosse uma tinta ? conta a historiadora.

Um dos destinos mais comuns da placenta chama-se ?print?. Ainda no centro cirúrgico, o profissional pega a placenta com sangue molhado e a emborca sobre uma folha de papel, formando uma espécie de quadro. Muitas mães emolduram.

? Fica lindo quando espalha a placenta no papel, parece uma árvore, árvore da vida ? atesta Carolina.

A médica Alanna Bezerra, patologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, alerta que nem toda placenta pode ser levada para casa, e cabe aos médicos e hospitais orientarem as famílias e providenciarem um meio para melhor estocar o material. Placentas de mães que tenham apresentado problemas durante a gravidez ou cujos bebês não estejam se desenvolvendo normalmente precisam ser examinadas por patologistas, já que podem dar pistas sobre doenças.

? Enquanto não houver regulamentação, é preciso que se tenha a noção de que a placenta é um órgão humano, ninguém sai por aí levando um coração dentro da sacola. Ela precisa ser congelada para que as proteínas parem de atuar, ou fixada em formol. Uma vez congelada, a placenta pode ser descongelada sem maiores riscos. A forma mais segura seria fazer o carimbo e descartá-la, ou plantá-la, virando adubo.

FALTA REGULAMENTAÇÃO

Embora não haja na literatura médica registro de nenhum caso de infecção por vírus como o da hepatite em mulheres que tenham ingerido placenta infectada, a patologista diz que esta crescente demanda pelo órgão é recente e precisa ser mais bem regulamentada, especialmente na rede pública, onde casos de infecção são mais frequentes e um bom pré-natal é raro para as mulheres.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) diz que o tema é recente e são necessários mais estudos para se posicionar sobre o tema. A Secretaria de Estado de Saúde do Rio disse não disponibilizar o armazenamento de placenta. A paulista afirma que, se uma mulher quiser levar o órgão para casa, é permitido nos hospitais públicos.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida de Portugal produziu um estudo no qual defende que o país tenha uma legislação própria sobre as condições de disponibilização da placenta. E demonstra preocupação quanto ao destino das placentas quando os partos são domiciliares, algo que também causa preocupação no Brasil.

COSMÉTICOS USAM OVELHA

Alguns cosméticos fabricados fora do Brasil são produzidos à base de placenta… de ovelha. Embora apresente uma constituição bem diferente da placenta humana, a do animal tem a mesma riqueza de nutrientes, que podem ser absorvidos pela pele e pelo cabelo para melhorar tanto textura quanto maciez.

No entanto, este tipo de produto só funciona porque não usa a placenta ?crua?, conforme explica a dermatologista Karla Assed. Esses cosméticos utilizam apenas determinadas substâncias retiradas da placenta, misturadas a uma fórmula. Por isso, não adianta cortar o órgão e passá-lo no rosto, por exemplo.

? A placenta é, de forma geral, conhecida por ter muito ferro e vitaminas B e E, mas não há estudos científicos que comprovem que a pele e o cabelo consigam absorver esses nutrientes de forma eficaz se simplesmente aplicarmos a placenta diretamente ? explica a dermatologista.

Cosméticos feitos com o órgão têm aprovação para venda nos Estados Unidos e em alguns países europeus, mas, no Brasil, só por meio de importação é possível experimentar.

PLACENTA – Chamada de órgão transitório, com prazo para nascer e morrer, tem duas partes. A materna fica em conexão com o útero, onde acontecem as trocas de sangue e a oxigenação, sua grande função para nutrir o feto. E tem a parte fetal, onde estão as membranas, que são as que rompem quando falamos ?rompeu a bolsa?. Esta parte é onde se projeta o cordão umbilical que vai se conectar ao umbigo da criança. Quando se inverte a placenta, dá para ver os vasos e o cordão umbilical descendo ? dando às imagens um formato de árvore mesmo. O órgão pesa cerca de 700 gramas, mas pode ultrapassar um quilo se o bebê for grande.

TRADIÇÃO – É tradição em tribos indígenas enterrar as placentas dos recém-nascidos para que os bebês ganhem proteção. Em países orientais como China, Coreia e Vietnã, a placenta é considerada uma fonte de energia vital e é utilizada, depois de desidratada e reduzida a cinzas, em tinturas, chás, poções e pílulas (produtos da medicina tradicional chinesa). Em alguns países muçulmanos, elas são colocadas no telhado para serem comidas por pássaros, para fortalecer o amor do casal.

CUIDADOS – Como não existe uma norma da Anvisa para manipular o órgão, especialistas aconselham congelá-lo ou mantê-lo em formol. Se congelada, uma placenta considerada saudável ? de uma mulher que não tenha apresentado sinais de pressão alta, diabetes ou infecções durante a gestação, ou cujo bebê tenha nascido sem intercorrências ? pode depois ser descongelada para plantio, sem riscos para a saúde. Não há riscos no ato de ?carimbar? a placenta num papel para fazer um quadro. O cordão umbilical pode ser retirado e o sangue seco não apresenta risco à saúde.