Cotidiano

Macri e Mães da Praça de Maio travam batalha de versão histórica

maes.jpg BUENOS AIRES ? O que pretendia ser uma entrevista leve para um dos sites mais visitados dos
Estados Unidos, o Buzzfeed, terminou numa saia-justa para o presidente da
Argentina, Mauricio Macri, que disse ?não ter ideia? se na última ditadura
(1976-1983) desapareceram 30 mil pessoas, como sustentam, há mais de três
décadas, as principais ONGs de defesa dos direitos humanos locais. Na mesma
semana em que a Casa Rosada divulgou documentos liberados pelos EUA que
confirmam atrocidades cometidas pelo regime militar e a preocupação do
presidente Jimmy Carter (1977-1981) com os sequestros, torturas e desaparecidos,
o chefe de Estado referiu-se a uma das maiores tragédias da História argentina
como ?uma guerra suja?.

As palavras usadas por Macri e seu questionamento de dados considerados
emblemáticos pelas ONGs locais, entre elas as Mães e Avós da Praça de Maio,
provocaram uma enxurrada de críticas ao presidente.

? Macri não pode desconhecer os números, é horrível o que ele disse, mas é o
que sente e pensa ? declarou Estela Carlotto, presidente das Avós da Praça de
Maio, que na campanha presidencial do ano passado respaldou publicamente a
candidatura do peronista Daniel Scioli.

O relacionamento entre o presidente e os mais importantes representantes das
ONGs de direitos humanos ? fiéis aliados do kirchnerismo ? nunca foi bom. Macri
sempre foi visto com desconfiança e considerado uma ameaça para o avanço de
processos judiciais sobre crimes da ditadura. Na prática, o chefe de Estado
respaldou desde o começo de sua gestão a ação da Justiça e teve gestos
importantes, como o pedido de documentos até agora confidenciais ao governo do
presidente Barack Obama. Mas a entrevista à Buzzfeed revelou profundas
diferenças que parecem tornar impossível uma aproximação entre Macri e as
ONGs.

? Não sei se foram nove mil ou 30 mil, se são os que
estão no muro (do Parque da Memória) ou muitos mais. A guerra suja foi uma
tragédia horrível, a pior coisa que aconteceu em nossa História, e isso não
passa por um número ? respondeu Macri à jornalista americana.

O presidente comentou, ainda, o escândalo de corrupção envolvendo a
presidente das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini ? acusada de ser
responsável por uma fraude de cerca de US$ 50 milhões ao Estado, num programa de
construção de casas populares.

? Não lhe respondo há anos… é uma maluca ? assegurou Macri, em referência a
Bonafini, que ontem se reuniu com a ex-presidente Cristina Kirchner
(2007-2015).

No encontro, a presidente das Mães brindou com Cristina
?para que Macri continue com medo da gente?. Hebe nunca escondeu sua antipatia
pelo chefe de Estado e costuma dizer que Macri foi ?cúmplice? da ditadura. Na
entrevista ao site americano, o presidente reiterou seu apoio aos processos
judiciais sobre crimes cometidos pelos militares:

? Tudo o que tenha a ver com a verdade e ajude a saber o
que aconteceu é prioridade, mas a maior prioridade é trabalhar pelos direitos
humanos do século XXI, como acesso ao trabalho, à saúde, ao transporte público,
que são ferramentas que as pessoas precisam para ser felizes.

A resposta das ONGs foi imediata.

? Se Macri acha que vamos esquecer, está muito enganado.
Isso não foi uma guerra suja nem limpa, foi terrorismo de Estado ? assegurou
Carlotto.

Já o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel disse que
?não houve guerra suja, houve repressão brutal?.

? Recomendo ao presidente que faça um curso sobre direitos e dignidade humana
? alfinetou.

Após almoçar com várias mães, Cristina assegurou que
Hebe ?é um exemplo? e comentou que semana passada, quando a Justiça ordenou a
detenção dela, lhe telefonou e pediu ?que tivesse muito cuidado?. Segundo
Cristina, na conversa Hebe lhe disse que depois do sequestro dos dois filhos na
ditadura e do câncer do marido (já falecido) ?nada pior poderia acontecer na
minha vida?.

? Me lembrei dela naquela época tão dura na qual
ninguém, além das mães, se atrevia a nada, porque todos tínhamos medo ? disse
Cristina.

Ontem, as mães fizeram a marcha número 2.000 na Praça de
Maio, como em toda quinta há mais de 30 anos.