Cotidiano

Luís Fujiwara, avaliador de políticas públicas: 'Resgatados são só a ponta do iceberg'

“Tenho 45 anos, sou formado em Administração Pública e PhD em Políticas Públicas pela Universidade do Texas. Estou na Organização Internacional do Trabalho (OIT) há mais de dois anos. Trabalhei cinco anos na ONU Mulheres e já fui consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).”

Conte algo que não sei.

A luta pela igualdade de gênero não se limita às mulheres. É uma batalha de toda a sociedade. O primeiro passo é reconhecer a existência do machismo e do sexismo. Se não trabalhar essa questão, nunca vai mudar. É muito mais fácil negar. É a velha saída. Uma forma de combate é diminuir a tolerância social ao problema, como uma forma de autorregulação da sociedade.

Há quantas pessoas em trabalho forçado no mundo, pelas estimativas da OIT?

Estimamos que haja cerca de 21 milhões. No Brasil, foram resgatados 50 mil desde 1995.

Como avalia as políticas públicas brasileiras no combate ao trabalho escravo?

A OIT reconhece que o Brasil é um país de referência global no combate à escravidão contemporânea, tanto pela legislação que é progressista em relação a outros países, como pelo trabalho dos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho. Há dois planos nacionais, uma sociedade civil ativa e um setor empresarial com sensibilidade para lidar com o tema. A política no Brasil é muito bem avaliada pelo conjunto das agências das Nações Unidas no país.

Caiu o número de resgatados no ano passado em 34%. Melhorou a situação ou houve menos fiscalização?

É um fenômeno criminoso, subterrâneo. Os resgatados são só a ponta do iceberg. Teria que conhecer o todo para dizer se está diminuindo ou não. Como todo crime globalizado, ele é absolutamente inovador e sem qualquer amarra institucional. No Mato Grosso, o gato (agenciador) e o escravocrata geraram uma dinâmica de trabalho em que a exploração é móvel. Eles ficam duas semanas e depois levam as pessoas para outro lugar. Dificulta a fiscalização.

O que mais poderia ser feito no Brasil?

Diminuir a tolerância social ao crime da escravidão contemporânea e também ao racismo, sexismo, questões que não deveriam ser toleradas pela sociedade. O consumo consciente é uma grande arma do cidadão e tem um poder gigantesco de influenciar empresas de qualquer setor.

A publicação da lista suja do trabalho escravo tem um papel fundamental, não?

A ONU reconhece que sim, que a lista suja é parte estruturante da política brasileira, internacionalmente reconhecida.

As mulheres no mundo todo foram às ruas contra políticas do presidente americano Donald Trump, que adotou caminho mais conservador, o que é visto também em outros países.

Trabalhei cinco anos na ONU Mulheres. Está acontecendo uma nova onda feminista, tema que foi apropriado pela sociedade global como relevante na agenda de desenvolvimento. E toda ação gera uma reação. Existe um movimento do outro lado, de negação de toda essa agenda que constava nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e está nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Vem se construindo um entendimento de que esse problema é também dos homens. Se não os incluirmos nessa questão, não vamos construir uma solução sustentável e abrangente. É muito importante que eles participem dessa luta, que deixem de ser parte do problema e se tornem parte da solução.

Há risco de retrocesso?

Não tem como regredir em alguns aspectos: a participação da mulher no mercado de trabalho, o empoderamento. Claro que ainda há muito a avançar. Mas se olharmos em perspectiva, o avanço de século XIX para cá foi tremendo. Até porque se trata de uma política que foi apropriado pela sociedade. Por mais que haja hoje em dia um movimento mais conservador, há limites para avanço dessa agenda de limitação dos direitos das mulheres.

Qual o maior problema da mulher no Brasil?

O principal é o sexismo, e também o seu braço operacional que é o machismo, porque, na verdade, está na causa de todos os outros problemas. A mulher não consegue entrar na política por causa do sexismo, do machismo, do racismo nclusive institucional. Ela não consegue ocupar um lugar mais adequado no mercado de trabalho pelo mesmo motivo. Todo mundo é machista e racista. Se nasceu num sociedade que é machista e racista, você vai reproduzir isso. O importante é ter a percepção do que somos e querer mudar. Quando alguém é flagrado reproduzindo esse tipo de preconceito, a primeira reação é negar. “Eu não sou assim, tenho amigos afro-brasileiros”, o que não significa nada. A pessoa pode ter vários amigos negros e ser racista. A mudança estrutural viria da erradicação desse discurso, do etnocentrismo e todas essas pragas. O feminismo não está propondo uma sociedade em que se inverta o papel de poder, ele está propondo que seja partilhado de forma equitativa, independentemente de raça, sexo ou idade.

Machismo e racismo institucional?

Este é um tema difícil. Se as pessoas não se reconhecem como machistas ou racistas, o que dizer das instituições.Existem pesquisas que mostram isso. Por exemplo, o atendimento médico de uma mulher negra no SUS demora cinco minutos, enquanto o de uma branca pode levar meia hora. Se fizer um corte de cor e raça na população prisional, vai ver isso também. É um problema institucional. Temos que ter mais atenção para gerar uma transformação maior, inclusive dentro das empresas. Em 2012, o Banco Mundial publicou um relatório que falava que a equidade – mais que igualdade – era uma prática inteligente do ponto de vista econômico. Uma grande empresa que não coloca mulher ou afro-brasileiro em cargo de chefia por causa do machismo e do racismo, está deixando de aproveitar seus recursos humanos de forma plena e eficiente. Existe um reflexo econômico, não se limita a um tema de direitos humanos. O racismo e o sexismo têm efeito perverso que se desdobra em outras searas, inclusive na produção.

Há um desperdício de talentos?

O Brasil é o país com uma das maiores taxas de homicídios de jovens negros. Há dois anos, tínhamos uma demanda não atendida por mão de obra, ao mesmo tempo que as pessoas que poderiam estar ocupando esse espaço no mercado de trabalho estavam vivendo um contexto de degradação absoluta de direitos humanos. As pessoas falam muita que açao afirmativa gera desigualdade. Não, ela gera equidade, equilibra a disputa. Ao contrário do que diz o senso comum, ela se baseia na meritocracia também. Só que, para ter essa competição, é preciso que haja a correção das desvantagens impostas por sexismo, racismo e etnocentrismo.

Como resolver isso?

Não tem solução mágica e nem politica bala de prata. O que temos é o reconhecimento do problema e a vontade de mudar. O reconhecimento de que você, como ser humano e organização. é racista e sexista, é o primeiro passo para mudar. Enquanto vivermos em negação, nada vai mudar.