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Londres-2012, os Jogos da receita certa

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Impossível competir com quem tem uma rainha de verdade e um agente secreto fictício, ambos adorados e irresistíveis. Juntos, Elizabeth II e 007 formaram a dupla que mais arrebatou o público, fez delirar de felicidade os súditos de Sua Majestade e deu aos XXX Jogos de Londres o inigualável toque de país soberano sem soberba.

Dorrit Harazim, a série – parte II

A ideia de ousar juntar um monumento vivo da História com uma figura invencível da fantasia fora do premiado cineasta inglês Danny Boyle, encarregado de organizar e coreografar a cerimônia de abertura. O delicioso é que a monarca aceitou contracenar com o ator Daniel Craig, à época o intrépido agente com licença para matar. O resultado foi um filmete de seis minutos projetado nos telões do Estádio Olímpico e transmitido ao vivo para bilhões de lares, que desemboca na presença ao vivo da rainha na tribuna de honra.

Vale fazer um resumo do vídeo:

O agente 007 chega de táxi ao Palácio de Buckingham. Veste smoking, claro. Parece ter pressa ao subir escadarias e atravessar inúmeros corredores palacianos, seguido pelo indefectível par de corgis da rainha. Diante de uma porta fechada, é anunciado por um mordomo:

? Mr.Bond, Majestade.

A ocupante vestida de brocado rosa-alaranjado está sentada numa escrivaninha, de costas, e se volta para o aguardado visitante. ? Good evening, Mr. Bond, diz ela.

Bond e rainha Londres 2012

O relógio de parede marca 20h30, horário preciso do início da cerimônia no estádio. A monarca pega bolsa, luvas, e sai do salão. Atrás dela, 007 e os corgis. No pátio, a dupla embarca num helicóptero portando a bandeira britânica, deixando para trás o duo canino, para discreto alívio de Bond.

Segue-se um sobrevoo de Londres com efeitos especiais saborosos, como o aceno à aeronave real enviado pela famosa estátua de Winston Churchill que existe perto do Parlamento. Em determinado momento, vê-se a rainha (na verdade uma sósia idêntica) saltando de paraquedas sobre o Estádio Olímpico iluminado que, àquela altura, passa a ser filmado em tempo real, com seus 80 mil espectadores.

No instante seguinte, o locutor da cerimônia faz o anúncio real e oficial do momento, em francês e inglês: ?Senhoras e senhores, queiram levantar-se para Sua Majestade a Rainha e Sua Alteza o Duque de Edimburgo?.

E simples assim: o público vê a rainha ao vivo adentrando a tribuna de honra. Trajava o brocado com que fora mostrada no palácio com James Bond. Apenas vestira as luvas, para melhor compor o figurino.

O festão da abertura, inteligente também na sequência, poderia ter terminado ali, por imbatível. Saiu-se dali de bem com a vida, adiando pensar nos Jogos propriamente ditos que se iniciariam na manhã seguinte. Afinal, entre 2004 a 2012, a sua realização fora alvo de intenso fogo, sobretudo fogo amigo.

?Façam um favor a Londres: deem a Olimpíada a Paris?, implorara em editorial o conceituado semanário britânico Economist na semana em que a capital inglesa ficou entre as cinco finalistas, junto com Moscou, Madri, Nova York e Paris. ?Por favor, por favor, queremos não ter os Jogos na nossa cidade?.

Em julho de 2012, a poucas semanas da abertura, quem desembarcava na Londres se deparava com manchetes de jornal pouco apaziguadoras: ?Legado do Parque Olímpico ameaçado após renúncia de CEO?; ?Londrinos ameaçam ir à justiça contra instalação de mísseis sobre seus telhados?; ?O aeroporto de Heathrow vai aguentar a pressão olímpica??; ?Londres quase transformado em estado policial?.

Caso único em olimpíadas das quais eu participara até então: as próprias autoridades inglesas decidiram testar o tamanho de um eventual colapso nos transportes criando um caos deliberado a título de teste. Num dia comum de trabalho, em pleno horário de pico, fecharam vários acessos a duas das maiores estações de metrô/trem da cidade (King?s Cross St.Pancras e London Bridge) e levaram os usuários a auges de irritação.

O otimismo panglossiano de Boris Johnson, o prefeito recém reeleito de Londres, levava até mesmo seus simpatizantes ao constrangimento. ?As coisas estão melhores do que em 1948, quando também sediamos Jogos em Londres?, dizia com a naturalidade de um Eduardo Paes. Isso, com soldados das Forças Armadas substituindo de emergência os 10.400 seguranças de uma empresa privada que batera em retirada faltando nove dias para a abertura dos portões olímpicos.

Problemas só aumentam quando são minimizados. Quando encarados, tendem a ser resolvidos. O transporte acabou fluindo bem graças à expansão da malha e a inauguração fartamente testada de uma nova linha de trem de alta velocidade. Foi possível que 240 mil passageiros/hora trafegassem num vai-e-vem ao Parque Olímpico. A logística em Heathrow também não deixou queixas e os mísseis, felizmente, puderam ser esquecidos nos telhados.

A única vitima fatal e horrenda ocorreu no quinto dia de competição, diante de dezenas de repórteres e fotógrafos: o ônibus de mídia que os transportava atropelou um ciclista na pista reservada ao tráfego olímpico. Foi pouco noticiado. É aquela história ? quando o foco está em centenas de provas muitas vezes simultâneas, disputadas em arenas distintas onde nem sempre é fácil chegar a tempo, um atropelado só vira manchete se ele for atleta.

Podem acreditar, uma Olimpíada depende bastante de seu exército de voluntários. Para o bem e para o mal. Eles estão por toda parte ? eram 60 mil em Atlanta, 100 mil em Pequim, 50 mil em Sidney, 70 mil em Londres, serão mais de 45 mil no Rio. Treinados, entre outros, para sorrir, o problema é quando o treinamento não vai muito além disso ? sorrir e querer fazer amigos.

Ocorre então um choque de expectativas: o turista olímpico ou o credenciado recorre a um voluntário no portão de uma área em busca de informação. O voluntário que não recebeu treinamento nem informação, responde com um lindo sorriso e pergunta de qual país você é em todos os idiomas que sabe. Já no primeiro dia é possível identificar a que tipo de treinamento o voluntariado local foi submetido.

Dorrit Harazim, a série

Neste quesito, como em tantos outros, Atlanta foi de chorar pois sequer sorriso havia. Em Pequim, os voluntários formavam uma impenetrável muralha de cordialidade. Em contrapartida Londres foi exemplar nas múltiplas funções que voluntários são chamados a desempenhar, com um diferencial que não existiu em nenhuma das edições das quais participei: autonomia plena, compatível com esferas de autoridade.

Não fosse esse o quadro eu teria perdido a gloriosa final de vôlei feminino entre Brasil e Estados Unidos, no decrépito Earls Court Exhibition Center, a milênios de distância do Centro de Imprensa onde eu me encontrava.

O ônibus de mídia designado para o vôlei partira do terminal com dois minutos de antecedência e me vi a pé, absolutamente sem recursos. Não haveria outro ônibus em tempo hábil, o acesso a táxis ali era proibido. Catástrofe total. Sem ter o que fazer, fui reclamar por reclamar.

Passei pela primeira instância, que, como esperado, me remeteu a uma segunda. Porém a terceira já veio com a solução: um veículo olímpico individual que me depositou na porta, a tempo. O leitor talvez não consiga captar o tamanho desse milagre, pois a solução fugia por completo a qualquer norma. Como o erro de dois minutos fora do motorista da organização, a voluntária de alto nível tinha autoridade para corrigi-lo.

Adorei. Sob o comando do técnico José Roberto Guimarães, Paula Pequeno, Thaisa, Fabiana, Jaqueline, Sheilla e Fabi se tornaram bicampeãs olímpicas vencendo as americanas por 3 sets a 1 no sábado 11 de agosto de 2012.

Brasil campeão olímpico de vôlei em 2012

A feiura da arena de Earls Court não foi regra nem exceção em Londres. Os organizadores haviam se esmerado em cortar as habituais extravagâncias dos comitês organizadores. E ainda assim o orçamento original estourou em cinco vezes. Excetuando-se o esplêndido velódromo com teto em forma de capacete, boa parte das instalações tinham charme zero. Em contrapartida eram funcionais, bem dimensionados, sendo muitas delas desmontáveis.

Mas os organizadores também contavam com uma farta escolha de locais icônicos para equilibrar o evento com pompa, circunstância, história e simbolismo. As 4.700 medalhas de ouro, prata e bronze, por exemplo, ficavam guardadas na Torre de Londres, usada por monarcas britânicos por mais de 600 anos para armazenar suas joias e coroas. Chique, não?

As partidas de vôlei de praia eram disputadas num dos pontos turísticos mais visitados da cidade, a Horse Guards Parade, esplanada da troca de guarda montada da rainha. Foi ali que a dupla masculina Emanuel e Alison conquistou a prata, e Juliana e Larissa, o bronze. Nas quadras quase sagradas de Wimbledon o escocês Andy Murray finalmente chegou ao topo.

Final olímpica do tênis 2012

E foi no bem antigo (1433) parque real de Greenwich que Zara Phillips, neta da rainha, conquistou a primeira medalha olímpica para a família. Foi um bronze por equipes em adestramento, comemorado com entusiasmo juvenil pelos primos William e Harry.

Zara Phillips londres 2012

Já o primeiro-ministro britânico conseguiu a proeza de estar invariavelmente no lugar errado na hora errada. A Grã-Bretanha viveu por quatro dias o temor de repetir o vexame dos Jogos de Atlanta, em que não conquistou um único ouro. Quatro longos dias em que as grandes esperanças em esportes de forte tradição no país ? canoagem, ciclismo, natação, provas equestres ? não alcançavam o topo. ?Não entrem em pânico?, aconselhavam os dirigentes do Time GB através da BBC, dirigindo-se tanto ao público quanto aos patrocinadores. ?Precisamos ser pacientes?, apregoava Lord Maynihan, presidente da Associação Olímpica Britânica, admitindo baixar as expectativas de 100 para 70 medalhas no total.

Cameron conseguiu não estar presente na radiosa manhã da quarta-feira, 4 de agosto, quando a dupla de remadoras Helen Glover/Heather Stanning conquistou o primeiro ouro, com catarse do público nas margens do lago artificial Eton Dorney.

Sequer estava em Londres quando Sir Bradley Wiggins eletrizou a nação vencendo a prova de ciclismo individual contrarrelógio, com direito a idolatria definitiva. Era a sétima medalha olímpica do atleta, que pretende tornar-se o maior do esporte nos jogos do Rio.

Bradley Wiggins – londres 2012

O premier fora visto esgueirando-se nas arquibancadas na impensável derrota do mascote e menino de ouro Tom Daley, estrela do salto ornamental, e na derrota de Mark Cavendish, tido como ouro certo no ciclismo de rua, cujo trajeto foi acompanhado por cinco fileiras cerradas de torcedores.

Deve ser um pesadelo ter fama de pé frio, ainda mais quando o que está em jogo é a honra nacional. Inversamente, deve fazer bem danado ao ego político ser aplaudido como portador de sorte.

Foi nesta arena que Cameron e François Hollande travaram um duelo olímpico privado nos Jogos. O embate começara sete anos antes, na reunião do COI em Cingapura. Quando o belga Jacques Rogge, então presidente da entidade, abriu o envelope e leu o nome ?London? como cidade vencedora, a França inteira ficara de luto pois Paris era tida como imbatível e os Champs Elysées já estavam engalanados.

Hollande optou por esnobar a cerimônia de abertura da rainha, mas estava a postos no dia seguinte, quando a natação francesa estreou sua admirável arrancada rumo ao pódio. Só nas primeiras 24 horas de competição o país já tinha conquistado dois ouros e uma prata. Por onde circulava, os atletas bleu-blanc-rouge subiam no pódio.

Paralelamente, o Bureau de Turismo gaulês também atacava, lançando uma sorteio-provocação através do Facebook. Para cada ouro do time GB, alguém ganharia duas passagens com estadia de dois dias em Paris ao término dos Jogos. O slogan do material de propaganda era ?Compita em Londres, celebre em Paris?. Leia-se, venha comer bem e se divertir bastante do outro lado da Mancha.

No final das contas, contudo, o motivado time de Sua Majestade fez a sua parte, com um desempenho invejável ? terceira colocação em numero de medalhas de ouro, atrás apenas de Estados Unidos e China, e à frente de Rússia, Alemanha e França. Foi o melhor resultado britânico desde 1908 e a cobrança, encerrada a festa, passou para a liderança política, encarregada de dar continuidade ao renascimento do esporte britânico.

Mais da metade das 47 medalhas obtidas pelos ingleses em Pequim haviam sido conquistadas por atletas saídos de colégios particulares. Considerando-se que essas escolas educam apenas 7% dos jovens ingleses, a distorção de oportunidades se tornara gritante. Para que os Jogos de 2012 não fossem mais do que um fervilhante parênteses de 17 dias de verão seria necessário extrair deles um benefício mais duradouro para o esporte de massa. Passados quatro anos, não há indícios de investimento desta natureza.

400m medley Londres 2012

Para o Brasil, Londres deu alegrias múltiplas, com um total de 17 medalhas conquistadas por 57 atletas nacionais em sete modalidades ? 3 ouros, 5 pratas e 9 bronzes. O segundo lugar do nadador Thiago Pereira nos 400 metros medley, a duas raias de distância e duas colocações à frente de Michael Phelps, foi deslumbrante e merecido. Nas duas edições anteriores dos Jogos, batera na trave. Desta vez, saiu d?água com uma prata no peito. E as cintilantes vitórias da judoca piauiense Sarah Menezes e do ginasta Arthur Zanetti, que se consagrou nas argolas, arrebataram tanto quanto o agoniado bronze da pentatleta pernambucana Yane Marques. Exemplos de belezas diferentes de conquistas individuais.

Zanetti – ouro em londres

A prova de Yane, por si só, já é um assombro. O pentatlo moderno tem duração de mais de dez horas, está dividida em cinco modalidades (esgrima, natação, hipismo e combinado alternância de corrida e tiro esportivo) e costuma freqüentar a lista dos esportes olímpicos a serem eliminados em benefício de algo mais moderno. Mas continua vivo, por ser um dos mais tradicionais.

Tratava-se da ultima prova do último dia dos Jogos, com 36 competidoras na corrida final na pista do Greenwich Park. A alguns quilômetros dali, no Estádio Olímpico, figurantes e operários faziam os derradeiros acertos para a Cerimônia de Encerramento que começaria em três horas. Enquanto Yane ainda tentava se recompor da exaustão, estatelada de costas, a repórter Karen Crouse observou a chegada da última competidora, Narumi Kurosu.

Pentatlo moderno – bronze Londres-2012

A miúda japonesinha imaginou que fossem para ela os ruidosos festejos e holas com que o público das arquibancadas a recebeu. Surpreendeu-se. ?Fiquei muito grata. Foi um momento especial?, disse a Crouse, através de intérprete. Na verdade, os festejos gerais eram para celebrar o encerramento das gloriosas competições.

Pouco importa. Estava todo mundo feliz. Ela e eles.

Post scriptum.

Em dezembro de 2013 recebi um email do LOCOG, o Comitê Organizador dos Jogos de Londres. Não abri porque a primeira linha me pareceu informar o essencial: a data em que desativariam as atividades. Recebi outros dois semelhantes que também não abri por imaginar que o conteúdo era da mesma linha burocrática.

No dia 16 de Fevereiro de 2016, porém, chegou-me uma carta registrada do escritório de advocacia Moore Stephens,150 Aldersgate Street, London, assinada por Jeremy Willmont. Eles haviam herdado questões ainda pendentes dos Jogos e estavam tentando me localizar. Eu estava listada como tendo pago 1.861,78 libras esterlinas a mais do que devido. Pediam que informasse para qual banco podiam fazer a devolução do dinheiro.

Em matéria de surpresas olímpicas, para mim essa terá sido a maior.