Esportes

Liderança de quenianos e etíopes na maratona desafia ciência

6eabb793-7297-4ff8-a3ad-622415bca575.pngRIO – Ponto pacífico de que na liderança da prova mais tradicional das Olimpíadas, a maratona, estarão quenianos e etíopes. Tanto no masculino quanto no feminino, os povos do Leste da África são os deuses da corrida de média e longa distância. Significativa nos 800, 1.500, 5.000 e 10 mil metros, na maratona a dominância é acachapante. Dos dez maratonistas mais rápidos do mundo, oito são quenianos e dois etíopes. Só o Quênia tinha 332 maratonistas com índice olímpico para escolher quem enviar à Rio-2016. Infográficos do Atletismo

Trata-se de favoritismo sem explicação estabelecida. A melhor aposta é que seja uma combinação de biologia, cultura, geografia, treinamento e economia. Em que medida, ninguém sabe. A resposta vale milhões de dólares para a indústria do esporte e a glória olímpica.

Ninguém tem dúvida de que Eliud Kipchoge (2h03m05s, de melhor marca) é um dos favoritos entre homens e Helah Kiprop (2h21m27s) entre as mulheres, com os etíopes a correr por fora. Nas provas de hoje (mulheres) e do dia 21 (homens), o Sambódromo, ponto de largada e chegada da maratona, será passarela africana.

O corpo ?padrão queniano? ? etíopes incluídos ? é sob medida para a longa distância. Pernas longas e finas, quadris estreitos e uma capacidade sobrenatural de usar oxigênio com eficiência. Os maiores especialistas do mundo em biologia do esporte estão convencidos de que há um fator genético. Todavia, ele nunca foi encontrado, a despeito de centenas de estudos até agora em vão.

O corredor e professor de biologia evolutiva da Universidade de Harvard Daniel Liberman assegura que ?o fato de não termos achado esses genes ainda não significa que não existam?. Mas certamente, destaca, não são apenas genes. Modo de vida, determinação e estímulo para treinar também falam alto.

Pode-se dizer que a história de vitórias quenianas em corrida olímpica começou nos Jogos do México, em 1968. Foi lá que Kipchoge ?Kip? Keino ganhou o ouro nos 1.500 metros. O mesmo Keino que veio a se tornar a primeira pessoa do mundo a receber a Láurea Olímpica, por suas contribuições ao esporte, na cerimônia de abertura da Rio-2016. Parte significativa do estímulo aos corredores do Quênia vem do trabalho iniciado por ele no vilarejo montanhoso de Iten, hoje um Olimpo da elite de corrida.

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Mas a origem da trajetória olímpica se iniciou muito antes. Está em algum momento da jornada do povo africano Kalenjin, há cerca de 2.500 anos, das planícies alagadas do Nilo para as terras altas próximas ao queniano Monte Elgon. Essa hipótese é defendida por gente como Liberman, conhecido no Brasil por seu seminal ?A história do corpo humano? (Ed. Zahar), e o jornalista americano David Epstein, autor de ?The sports gene? (Penguin), o livro mais influente sobre o assunto.

Kalenjin é sinônimo de corrida. Os cerca de 4,5 milhões de Kalenjin são cerca de 10% da população do Quênia e três quartos dos corredores de elite quenianos. Todos os corredores de alto rendimento de Uganda pertencem ao povo Sebei, inclusive o campeão da maratona dos Jogos de Londres de 2012, Stephen Kiprotich. Os Sebei vem a ser um subgrupo dos Kalenjin.

Na Etiópia, a segunda potência em corrida de longa distância do planeta, o povo Oromo representa um terço da população e quase a totalidade dos corredores de elite. Os Oromo compartilham com os Kalenjin a mesma origem do Nilo. São o que especialistas como Liberman chamam de povos nilóticos que, como indica o nome, se estabeleceram inicialmente ao longo do Rio Nilo.

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Os povos do Nilo têm em comum as pernas longas e finas, quadris estreitos e estatura relativamente baixa, menos de 1,70 metro. Esse biotipo evoluiu em condições quentes e secas, pois favorece o rápido resfriamento do corpo.

As pernas dos Kalenjin são de 15% a 17% mais finas do que as de europeus, por exemplo. Em longa distância, isso vale literalmente ouro. Pernas mais finas gastam menos energia. Um estudo dinamarquês mostrou que acrescentar 45 gramas ao tornozelo aumenta em 1% o gasto energético. Em média, os quenianos gastam 8% a menos de energia por quilômetro.

O termo técnico economia de corrida significa usar o mesmo volume de oxigênio para ir mais rápido. Corredores do Leste da África se notabilizam pela corrida econômica. Isso pode ser atribuído tanto por alguma característica genética que se manifesta em seu biótipo quanto por fatores ambientais. Os Kalenjin, costuma frisar Epstein, combinam a maior capacidade pulmonar, característica de povos de altitude, com a rápida resposta ao treinamento em elevação. Essa última se deveria ao fato de a migração para terras altas ser relativamente recente em termos evolutivos.

Geografia e genética não caminham sós. Atletas africanos, quenianos em especial, treinam num ritmo brutal, competem com ferocidade entre si. Corrida no Quênia não é esporte apenas e menos ainda, diversão. É a melhor e quase sempre a única forma de sair da miséria. Mais do que esporte nacional, a corrida é uma profissão respeitada.

Num país sem indústria, com agropecuária deficiente e serviços precários, o salário médio anual fica pouco acima dos R$ 4 mil. Uma prova como a Maratona de Nova York pode pagar US$ 100 mil em prêmios. Por isso, as principais maratonas do mundo, como Berlim, Nova York, Londres e Dubai, são muito mais atraentes para os atletas de elite do que a Olimpíada, que não paga em dinheiro, embora traga prestígio e visibilidade.

ROTINA DE DOR E SOLIDÃO

E atrás destes dois, eles chegam com uma única possibilidade em mente. Só basta vencer, salienta o técnico Adauto Domingues, que treina o maratonista do Brasil Marilson dos Santos:

? Eles vêm com tudo. A competição em casa é inimaginável. No Quênia todo mundo corre e a primeira disputa que enfrentam é entre eles mesmos. Claro, outros atletas podem ganhar. Mas os africanos, em especial os quenianos e etíopes, reúnem um conjunto vantajoso de condições.

Um maratonista queniano treina entre 200 e 250 quilômetros por semana. Por Iten, Eldoret, pelas florestas de Kaptagat e por todo o Quênia é comum ver meninos e meninas treinando, disse recentemente Epstein. E correm duas, três vezes por dia. A vida de um corredor que aspira a elite é uma rotina de dor de lesões frequentes e solidão das horas a fio a correr. O único diálogo é com o próprio corpo.

Onde estará a próxima potência de corrida? Epstein sugere que possa vir do castigado Sudão do Sul, se o novo país um dia oferecer condições mínimas de treinamento. Afinal, foi de lá que os Kalenjin partiram rumo ao Olimpo.