Cotidiano

Kuniichi Uno, filósofo: 'A arte leva à descoberta de um novo corpo'

“Meu trabalho fala de literatura, dança, teatro e filosofia. Vivi na França, onde fui aluno de Gilles Deleuze, com quem fiz minha tese de doutorado sobre o pensador Antonin Artaud. Sou amigo de Hijikata Tatsumi e Tanaka Min, dançarinos do butô. Liguei a pesquisa artística deles à literatura de Artaud e Jean Genet e a filosofia de Deleuze”.

Conte algo que não sei.

Talvez haja menos interesse hoje pela política, literatura e filosofia francesas, não querendo dizer que a cultura francesa tenha acabado. Talvez esteja um pouco menos presente. Porém, nos anos 60 e 70, na minha juventude, era predominante, e a gente lia e traduzia muito da cultura francesa no Japão.

Por que você foi estudar na França?

Metade do que eu lia era de origem francesa. Havia uma professora de francês, mas naquela época o ensino de idiomas estrangeiros era muito clássico e quadrado, com aulas magistrais de conjugação e gramática. Para, realmente, aprender o francês tinha que ir para a França. Assim que terminei meus estudos na universidade de Kyoto, decidi estudar lá.

Como essa experiência o influenciou?

Se eu fui à França para descobrir filosofia e literatura francesas, na verdade, a minha estadia lá me abriu para quase o mundo inteiro. Aproveitei essa mesclagem de culturas. Descobri, por exemplo, Macunaíma, o cinema africano e a arte abstrata e o expressionismo norte-americano.

E de que forma isso impactou o seu trabalho?

O ponto de partida da minha reflexão é um encontro de várias influências que Paris permitia à época. A problemática do corpo passou a me interessar tal como foi colocada tanto por poetas, quanto por filósofos franceses e japoneses. Passei a assistir às aulas de Deleuze e comecei a minha tese de doutorado sobre Artaud, onde fiz uma reflexão conjunta sobre a experiência dele com o corpo, em todas as vertentes da sua obra. Ao mesmo tempo, estudei o pensamento de Deleuze sobre o assunto. Também assistia aos espetáculos do dançarino Tanaka Min e fiquei muito impressionado com a sua arte. A mesclagem disso tudo foi minha fonte para a tese.

O que o impressionou no trabalho de Tanaka Min?

A grande diferença do trabalho dele para o que era considerado dança naquela época. Mais do que mostrar técnicas do balé ou prezar pela beleza dos gestos e movimentos, ele apresentava algo de muito bruto e originário, muito primevo. Era uma forma de se mover que representava um questionamento da dança. Era, antes de tudo, uma descoberta do corpo.

E como a arte pode reinventar o corpo?

Acho que a arte mudou muito, sobretudo desde a segunda metade do século XIX, com a introdução da arte abstrata e da arte de outras civilizações. Essa mesclagem de civilizações e do abstracionismo viabilizou uma busca e uma descoberta do corpo na arte.

Por que as preocupações com o corpo ganharam tanto destaque no século XXI?

É uma vontade de controle do próprio corpo, só que essa vontade é logo recuperada pelo que chamo de ?capitalismo do corpo?, ou seja, as salas de ginástica, os clubes, a parafernália em torno do esporte e dos Jogos Olímpicos, toda essa indústria do corpo que se capitaliza em cima da vontade das pessoas de se controlarem. Nesse contexto, a dança do Tanaka Min oferece uma forma de fuga disso tudo, sugere um outro corpo.

E que corpo é esse?

A arte leva à descoberta de um novo corpo, não mais aquele terrestre, que remete à forma ou à beleza. Outros países e outras artes também fizeram essa ruptura, como Tanaka.