Cotidiano

Irvine Welsh: 'Uso humor como um mecanismo para diminuir a tensão'

PARATY – Quinta-feira, 30 de junho, 21h30m. O curador da Flip 2016, Paulo Werneck, sobe ao palco e explica: “Esse horário reúne mesas que têm a ver com a contracultura, a boemia, o sexo, outras experiências literárias”. Assim foi apresentada a mesa 6, “Na pior em Nova York e Edimburgo”, que reuniu o autor escocês Irvine Welsh, de “Trainspotting” (Rocco), e o agente literário e escritor americano Bill Clegg, do autobiográfico “Retrato de um viciado quando jovem” (Companhia das Letras). De literatura suja, afogada em drogas, os dois se juntaram, como avisou o mediador (e autor e tradutor de Welsh) Daniel Pellizzari, para falar sobre drogas, mas não só.

Foi Welsh quem abriu os trabalhos, de pé, lendo um trecho de “A vida sexual das gêmeas siamesas” (Rocco), recém-lançado no Brasil. Clegg seguiu, preenchendo os 30 minutos iniciais da apresentação. Como atualidades são normalmente pauta na Flip, o mediador convocou Welsh a imaginar o que Spud, Begbie, Renton e Sick Boy estariam achando do resultado Brexit, o referendo que votou pela saída do Reino Unido da União Europeia, na semana passada.

– Se eles estivessem afundados em drogas como em “Trainspotting”, eles não dariam a mínima para o Brexit, eles tinham mais o que fazer – brincou Welsh, que está pilotando a continuação da adaptação de seu livro para o cinema, novamente pelas mãos de Danny Boyle. – “Pornô” foi uma base, mas dessa vez eu tive mais tempo para escrever e fiz várias versões do roteiro. Mas estamos fazendo o filme com a mesma equipe, o mesmo diretor, os mesmos produtores? na Inglaterra não tem tanta gente assim, então temos que usar as mesmas pessoas – brincou, citando uma anedota recorrente no showbiz.

Instigado a falar sobre suas memórias e como elas influenciavam em sua literatura, Welsh contou ainda que as lembranças o ajudaram a entender que ele era, na verdade, um ficcionista.

– Meu primeiro livro começou com uma memória, mas me dei conta de que uma memória pouco confiável é uma invasora. Eu me coloquei numa situação de auto-engrandecimento com as histórias e cenários, e me senti pouco à vontade. Então me dei conta de que era um escritor de ficção, eu não queria ser limitado pela verdade, queria ir além – lembra Welsh, que também tentou ser músico, sem sucesso, usando sua paixão como pano de fundo para suas obras.

Clegg, que escreveu dois livros autobiográficos antes de se aventurar em seu primeiro romance, ele que é um popular agente literário em Nova York, lembrou de sua juventude no interior.

– O início do romance surgiu quando eu estava escrevendo sobre a minha cidadezinha natal em Connecticut, eu tinha 34 na época e não voltava para lá desde os 19 anos, quando fui para a faculdade. Escrevi tudo o que lembrava da cidadezinha, os nomes, as brigas, as fofocas. E quanto eu mais lembrava, mais eu percebia que não precisaria de nada disso para o meu livro de memórias, que era sobre o meu período como viciado em drogas. Ao acabar o livro, voltei a esse arquivo e notei que havia muita tensão de classes naquela cidadezinha. Foi de onde o romance saiu – contou, sobre “Você já teve uma família?” (Companhia das Letras), que levou sete anos para ficar pronto. – É quase desanimador se dar conta de quanto aquele período de adolescência fica assombrando a gente.

Ao finalmente falar sobre drogas, Clegg, que já foi viciado em heroína, negou que o sucesso deste tipo de relato se deva a uma espécie de voyeurismo.

– As drogas e álcool afetam todo mundo, e se você não é dependente, você conhece alguém que seja. Não acho que seja voyeurismo, mas sim identificação. A maioria de e-mails que eu recebo são de familiares que tentam entender a experiência da dependência. Desapareci durante meses por causa das drogas, e entendo que muitas pessoas que não são dependentes também sentem essa vontade de usar drogas e sair porta afora para fugir das frustrações.

Welsh, dono de uma linguagem muito particular, e de um humor feito para trincar os dentes, falou sobre as motivações deste tipo de narrativa.

– Para mim soava pretensioso que meus personagens falassem no inglês padrão. Eu queria que os leitores se sentissem dentro da sala com aquelas pessoas, sentindo seu bafo na nuca. Eu queria passar a sensação do ácido, do ecstasy durante uma boate – diz ele, para quem o humor é um mecanismo que não se presta apenas a fazer rir. – Uso humor como um mecanismo para diminuir a tensão, para que as pessoas possam se envolver com questões mais sombrias, uma forma de dar espaço para o leitor se aprofundar mais na história. O humor é uma forma de confrontar. Há algumas semanas, eu estava na Escócia e houve um funeral. Meu primo estava conversando com essas pessoas mais velhas que estavam tristes por terem enterrado um amigo e falou “vocês deveriam ficar por aqui mesmo, já estão todos com o pé na cova mesmo”. É uma coisa horrível de se dizer, mas eram pessoas sendo confrontadas com a sua mortalidade, e as pessoas riram.

Em tempos de táxi versus Uber, Welsh contou ainda das suas experiências com taxistas, uma classe, segundo Pellizzari, das mais odiadas.

– Estava em Edinburgo e mandaram um taxista me buscar para me levar para o aeroporto, e ele me pediu para desviar o caminho para resgatar a filha, que estava super bêbada, e estava sendo importunada por um cara também muito bêbado. Então ele tentou buscar a filha, o cara não o conhecia, e o homem achou que fosse apenas um taxista pervertido tentando sequestrar uma menina. Eu ajudei a colocar a menina dentro do táxi e fomos levá-la para casa. Então comecei a pensar se ele era o pai dela mesmo, se eu estava participando de um sequestro muito louco. São coisas que acontecem em Edimburgo.