Cotidiano

Howard Levine, psicanalista: 'Existir é essencialmente traumático'

“Sou professor do Instituto de Psicanálise de Massachusetts e estudo o impacto das perturbações primitivas de personalidade na vida adulta, a relação mãe-bebê e os traumas do abuso sexual. Passei a carreira tentando aprender com estudiosos, da América Latina à Europa, para entender melhor as pessoas e o desenvolvimento da mente”.

Conte algo que não sei.

Existir é essencialmente traumático ? e potencialmente insuportável. E a única coisa que podemos fazer para lidar com o trauma que é estar vivo é desenvolver nossa mente. Só conseguimos controlar nossas emoções quando somos capazes de raciocinar. Apesar de parecer óbvio, as ações impulsivas são mais comuns do que se imagina. Por isso, é preciso desenvolver a parte do cérebro que faz negociações, para que consigamos administrar a realidade que nos cerca.

Todos passamos por dificuldades durante a vida. O que constitui um trauma?

Seja o problema do racismo nos EUA ou as condições sociais das favelas brasileiras, todos temos problemas sociais. O termo “trauma”, contudo, tem sido usado levianamente. Um trauma é algo que desorganiza, desestabiliza sua capacidade psicológica. De fato, não é o mesmo que um desafio ou uma tristeza. Nem toda dor é traumática, porque nem toda dor desregula sua capacidade psicológica. Essa é a natureza da vida. Como lidar é o desafio. Viver é enfrentar as forças da criação e destruição.

No Brasil, temos um ditado que diz que a infância é aquilo que você vai passar o resto da sua vida tentando superar.

Sim! E aí as pessoas crescem e fazem terapias só para descobrir que tudo aquilo que suas mães diziam sobre você era verdade! [risos] Você não é perfeito, e ela tinha razão.

Pessoas que cometem abusos já foram abusadas de alguma maneira?

Não é uma regra, mas na maioria dos casos é o que acontece. Pessoas que sofreram algum tipo de abuso, emocional, psicológico ou sexual, crescem e tornam-se ?predadores?. Isso porque, em geral, não conseguem lidar com os próprios impulsos e sentimentos e passam a não se importar com o outro. Só se importam com os próprios desejos. Esses agressores sexuais perdem a habilidade de sentir empatia. Não é uma escolha consciente.

Essa perda de empatia pode ser um trauma experimentado por uma sociedade inteira? Poderia explicar o que estamos vendo em Aleppo?

Em termos de conflitos internacionais há uma teoria que fala sobre a “pseudoespeciação”, que acontece quando grupos, ou até mesmo indivíduos, se convencem de que seus inimigos não são iguais a eles, para justificar seus ataques: “Nós somos os verdadeiros humanos, eles são lixo.” É uma racionalização que lhes dá licença para agir como bem entenderem.

Os EUA foram fundados por imigrantes, mas vemos Trump adotando essa lógica.

A sociedade americana está doente. Se desvirtuou do espírito comunitário pelo qual foi fundada e passou a entoar lemas xenofóbicos e preconceituosos, o que representa uma inabilidade de pensar e de processar sentimentos. Diante de uma situação de estresse, as pessoas precisam encontrar alívio, ou acabam agindo cegamente ? e foi isso que fizeram com Trump. Passaram a pensar com as partes mais primitivas da mente.

E como a psicanálise ajuda?

O tratamento sempre começa com a conexão com outro indivíduo. É preciso que as pessoas se sintam ouvidas e compreendidas num nível muito fundamental. É horrível estar sozinho no mundo ? e todos estamos. E, por um momento, ter alguém conosco, de maneira profunda e relevante, é extremamente emocionante e fortalecedor. É capaz de dar coragem e esperança. É o que mais precisamos nesse momento.