Cotidiano

Grupos de automutilação digital se disseminam pela rede social

Parte dos integrantes é propensa à depressão, ou com problemas familiares ou falta de aceitação à sexualidade

Toledo – Uma situação que foi parar no Ministério Público em Toledo merece atenção de pais ou responsáveis por crianças e adolescentes, sobretudo os que possuem celulares e não desgrudam deles por nada. Isso porque, muito provavelmente, o problema não se restrinja à pequena e pacata cidade do oeste do Paraná.

O alerta é preocupante e estarrecedor vem de uma mãe que, desesperada, confiscou o celular da filha de 13 anos, além de ter uma conversa muito franca com ela e propor imediato acompanhamento psicológico.

No WhatsApp da filha, a mãe encontrou pelo menos três grupos que lhe causaram pânico. O que chama a atenção é que em um deles havia pelo menos 200 crianças e adolescentes, de 10 a 14 anos, todos de uma mesma escola que tem cerca de 800 alunos. Ou seja, 25% deles compartilhavam na mesma rede social a automutilação.

O grupo foi criado para troca de mensagens nada amistosas, geralmente intimidadoras, de modo que estimulem o sofrimento em si mesmo.

Os adolescentes induzem uns aos outros, mas na maioria das vezes organizados por mentores que – ao que tudo indica – são de outras regiões e estados.

Eles sugerem que os jovens provoquem cortes em si mesmos com lâminas de barbear, numa variação do Baleia Azul, só que não se trata de um “jogo”, apenas de “desafios”, no que vem sendo chamado por especialistas de automutilação digital, prática que vem crescendo de forma assustadora, sobretudo entre adolescentes de 12 a 17 anos.

E o pior: a prática virou “modinha”. “O que diferencia os grupos nas escolas não é necessariamente quem fuma maconha ou cigarros ou coisa assim, é o que tem coragem de se automutilar”, relatou a mãe.

Segundo ela, sua filha não apresenta marcas de machucados, mas ela acredita que isso aconteceria muito em breve. “Fui olhar no estojo escolar dela e encontrei lâminas… Em um colégio são mais de 200 integrantes no mesmo grupo, imagine o que não acontece nos demais colégios. Certamente não é algo isolado”, afirma a mãe.

O celular não voltou mais para as mãos da filha e, ao analisar as mensagens, veio outro movimento preocupante. Há inclusive trilhas sonoras que incitam a automutilação.

Ainda de acordo com a mãe, uma amiga da filha que estuda no mesmo colégio já traz os sinais bem visíveis dos cortes. “A maior parte dos pais nem deve ter noção do que está acontecendo com os filhos”, alerta a mãe.

Por que se mutilar?

Dentre as justificativas dos adolescentes para fazer se cortar é que essa seria uma “forma para amenizar uma dor emocional”. Elas dizem que têm uma dor emocional que não passa, mas que se caso se cortem essa dor física vai superar esse sofrimento.

Com o celular da filha, a mãe tem mantido o monitoramento dessas redes, sem descuidar da adolescente. Ela aconselha outros pais para que façam o mesmo. “Os pais precisam ficar atentos. Às vezes marcas que parecem ser estrias nas pernas, se observar direito, na verdade se tratam de cortes provocados pelas lâminas”.

Na escola onde a garota estuda ninguém foi localizado para falar sobre o assunto.

“As pessoas só chamam a gente de louco…”

O Jornal O Paraná teve acesso às conversas de alguns desses grupos. Num deles, um homem manda áudio para os adolescentes dizendo o quanto se sente bem fazendo isso e leva a discussão para outro patamar: “As pessoas só chamam a gente de louco, mas ninguém pergunta por que estamos fazendo isso. Pelo que a gente passou ou está passando para fazer isso”.

Em outro áudio a pessoa diz ter sido rejeitada pelo pai, que vive em um mundo repleto de criminalidade, que aprendeu a atirar muito cedo e que aos 17 anos cometeu o primeiro homicídio. “Então, quando eu me corto, me sinto bem com isso vendo aquele corte e o sangue escorrendo. Isso me traz paz”, completou o homem em um destes grupos.

Confira íntegra desses áudios:

 

Atenção, diálogo e disposição para o enfrentamento

Para a psicóloga Juliana Deves, esses problemas são muito mais sérios do que os pais possam imaginar e, em alguns casos, quando isso fica visível, pode ser tarde demais. Para ela, a principal indicação aos pais é para que estejam sempre atentos ao comportamento dos filhos, tenham uma relação de proximidade e de diálogo. Aos filhos a recomendação é de que tentem enxergar os pais como amigos, jamais como adversários, e que os problemas sejam sempre encarados em conjunto.

“Uma família precisa estar unida, tratar desses problemas junta. Isso [automutilação digital] é algo que vem crescendo muito e que precisa ser analisado como uma doença e que precisa ser tratado com amor e muito diálogo. Os filhos adolescentes não podem nem devem ter privacidade, sobretudo nas redes sociais. Os pais podem e devem monitorar os filhos”, destacou.

Segundo a psicóloga, parte expressiva desses adolescentes é propensa ou tem depressão, muitos têm dificuldades no convívio familiar e outros tantos têm dificuldades em lidar com a própria sexualidade. “Então cometem isso [se cortam] também como uma forma de chamar a atenção, de pedir atenção, de pedir socorro”, concluiu.

Mundo todo

A automutilação digital, também chamada de auto-cyberbullying, é tema recorrente no mundo inteiro. Pesquisas indicam o crescimento de casos e algumas chegam a tratar que um de cada 20 estudantes se automutilam. Em sites de buscas é possível encontrar diversas reportagens sobre o tema em grandes redes como a própria BBC.