Cotidiano

Grupo tenta revitalizar mítico casarão do Cosme Velho com programação cultural

RIO ? As tábuas de madeira cedem e rangem sob o peso dos visitantes. O telhado, danificado, permite que a chuva caia nos amplos ambientes onde a pintura descascada poderia até passar por estilo, não fosse só a ação do tempo e do descuido. Não há água nem gás. Mas existe luz. Religada há poucas semanas, ela pode ser considerada uma metáfora da nova energia que tomou conta do Solar dos Abacaxis. Há dez anos fechado, e hoje pertencente a 13 herdeiros, o imponente casarão da Rua Cosme Velho construído em 1843 vive um novo ciclo. À frente dele, profissionais de áreas distintas ? os curadores de arte Bernardo Mosqueira e Ulisses Carrilho, o professor e artista Bruno Balthazar e o arquiteto Adriano Carneiro de Mendonça ? movidos por um desejo comum:

? Sentimos uma lacuna na cidade, a falta de um local independente para experiências culturais ? diz Mosqueira. ? Pensamos no solar como um espaço onde as margens do mundo possam dialogar com as margens do Rio. Vivemos muito ilhados, autorreferentes, e entendemos que esses encontros criam transformação.

DEBATES E COMIDINHAS

A ideia de diálogo está presente na programação do local, que tem início oficial nesta sexta-feira, com o lançamento do seu primeiro projeto público de longa duração. Com a realização da Olimpíada e a emergência da crise dos refugiados ? só no Brasil há atualmente 71 mil, de 80 diferentes nacionalidades ?, criaram o evento ?Solar dos Abacaxis: território liberdade?, com exposições, debates, programa educativo e outras ações. O nome faz referência à obra de Antonio Dias ?Território liberdade?, instalação emblemática de 1968 que propõe à pessoa utilizar o espaço declarado livre, demarcado no chão, para apresentar uma ação ? ?seja mental, física ou visual?, escreveu o artista à época.

INFOCHPDPICT000060103989

A peça estará a partir de hoje no local, assim como 15 obras da série ?Bandeiras ? Territórios imaginários?, do poeta visual mineiro Guilherme Mansur, hasteadas na fachada. As ?bandeiras mestiças? não unem simplesmente duas metades. Elas fazem uma simbiose de símbolos e cores, criando um pavilhão de país imaginário. Como a do Vaticongo (Vaticano com Congo, que prega ?rezar a missa do papa ao som de tambores?) ou Portubéria (Portugal + Libéria, ?os novos navegadores?).

A programação de debates começa hoje também, às 17h, com o tema ?Cultura e fuga como produção e resistência?. Em seguida, haverá uma roda de entrevistas com refugiados e imigrantes, sobre ?Esporte e integração? (leia a programação abaixo). O formato se repete nas duas próximas semanas. Complementa o projeto, ainda, uma ação performática do coletivo artístico Opavivará!: a instalação de uma cozinha, onde serão preparadas comidinhas.

? Queremos dar visibilidade a essas pessoas, para que essas questões se tornem questões da cidade. Vivemos uma crise de empatia. O que fazemos aqui é estimular estados de empatia ? defende Mosqueira.

Para bancar o projeto, que inclui ainda uma ação com crianças refugiadas e brasileiras (dia 27) e um Mercado Mestiço (dia 28), os organizadores do Solar vêm realizando desde o início de julho, sempre às quintas-feiras, o Manjar, que definem como ?uma plataforma expositiva experimental?. A cada noite, um artista apresenta um trabalho em construção; em seguida rola uma festa, onde é oferecido algum alimento elaborado por um jovem cozinheiro ou refugiado (estes articulados pela Junta Local e pela Cáritas, entidade da CNBB que atua junto a grupos marginalizados). Já passaram por lá, entre outros, os artistas Marcos Chaves e Joana Traub Csekö; já foram responsáveis pelo som festas como Moo, Rebola e Hi-Fi. A entrada é gratuita, e o espírito é colaborativo. Os próprios mentores do Manjar se revezam no bar, atendendo a um público de 250 a 350 pessoas.

? A gente estabeleceu que esse não é um lugar hierárquico, então levamos a crença adiante. Somos colaboradores, mas o público que vem também é. Cada venda no bar é uma doação para o projeto ? diz Carrilho.

É com o dinheiro angariado no bar, em seis edições do Manjar, que levantaram a verba para produzir o ?Território liberdade? e pretendem fazer reformas emergenciais. A principal é o conserto do telhado. Já o valor da compra do imóvel (R$ 3 milhões) e do restauro (avaliado em R$ 7 milhões), preveem obter com ações como crowdfunding, leilões e eventos, além de doações. O projeto institucional ? a forma jurídica será a de uma associação sem fins lucrativos ? está sendo desenvolvido com a ajuda de Eleonora Santa Rosa, especialista no restauro de prédios históricos e constituição de espaços culturais. Por enquanto, vigora um contrato de aluguel, por três anos.

RESIDÊNCIA DE 36 FAMÍLIAS

Tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), o Solar dos Abacaxis foi projetado por Jacinto Rabelo, discípulo de Grandjean de Montigny, para o comendador Manoel Borges da Costa. Possui mil metros de área construída, mais 5 mil de área livre, sendo 4 mil de mata. Com o tempo, virou uma casa de cômodos, onde chegaram a morar 36 famílias. Em 1940, a poetisa Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, bisneta do proprietário original, e seu marido, Marcos Carneiro de Mendonça, historiador e notório goleiro da seleção brasileira (pais da crítica de teatro Barbara Heliodora, morta em 2015), recuperaram o imóvel, fazendo uma grande reforma na qual foram adicionados os 14 abacaxis em ferro fundido da sacada. Os adornos que acabariam batizando a casa não estão lá hoje. Como alguns foram furtados, optou-se por retirar os restantes e fazer cópias para substituir os originais.

Os quatro amigos vêm negociando o uso da casa com os 13 herdeiros, netos do casal (Adriano, um dos envolvidos na revitalização, é bisneto). Atualmente ela abriga quatro cursos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage ? a instituição foi desalojada durante o período olímpico, para sediar a Casa da Grã-Bretanha.

Agosto no Solar

Dia 12: Às 17h, debate ?Cultura e fuga como produção e resistência?, com Fabrício Toledo (PUC), Aryadne Biyencourt (UFRJ) e a artista Regina Parra. Às 18h30m, refugiados de República Democrática do Congo, Venezuela e Costa do Marfim falam sobre ?Esporte e integração?.

Dia 18: Às 19h, Manjar com Caroline Valansi e festa Selvagem.

Dia 19: Debate às 17h: ?Política internacional e movimentos migratórios contemporâneos?, com Roberto Yamato (IRI/PUC), Mélanie Montinard (Haiti Aqui/ UFRJ) e a artista Clara Ianni. Às 18h30m, refugiados e imigrantes de Síria, Serra Leoa, Colômbia e Haiti falam ?Arte e integração?.

Dia 25: Manjar, às 19h, com Ricardo Castro, e a festa Arrastão.

Dia 26: Debate (17h): ?Diáspora e a problemática racial?, com Katherine Jensen (Universidade do Texas), José Renato Baptista (Desu/Ines) e Bruno Balthazar. Às 18h30m, refugiados e imigrantes de Congo, Gâmbia, Colômbia e Haiti falam de ?Gênero e refúgio?.

Dia 28: A partir das 11h, Mercado Mestiço, com barraquinhas de produtores regionais do país e de refugiados.