Cotidiano

Grupo Galpão reage ao contexto político do país com a peça ?Nós?

INFOCHPDPICT000059161256RIO ? Num dado momento da peça ?Nós?, o novo trabalho do Grupo Galpão, a atriz Teuda Bara toma a palavra, interrompe o fluxo de diálogos e movimentos que guiam a montagem, e dá voz a um protesto:

? A peça para e eu me posiciono contra a Samarco (cuja barragem em Mariana, Minas, rompeu em 2015, destruindo o Rio Doce), contra esse crime ambiental terrível que aconteceu ? diz Teuda. ? Fiquei muito chocada com tudo e redigi o meu manifesto.

A ação de formular, redigir e encenar um manifesto é um exemplo significativo das provocações exercitadas pelo diretor Marcio Abreu durante o processo criativo da peça, que estreia nesta sexta-feira no Sesc Ginástico, onde fica em cartaz até 10 de julho. Convidado pelo grupo de atores para dirigir o seu 23º espetáculo, Marcio aceitou a proposta tendo em vista utilizar o encontro para investigar a reação desse coletivo e de seus indivíduos diante das pressões exercidas pelo contexto político-social do país.

? Assim que o convidamos, o Marcio disse que gostaria de fazer uma peça política ? conta o ator Eduardo Moreira. ? Então ele sugeriu uma série de leituras, improvisos e provocações para que a gente percebesse a relação entre o ambiente privado e o público, entre o dentro e o fora de nós, ou seja: sobre como o mundo age sobre a gente e como cada um de nós reage aos nós desse tempo, às crises que marcam o presente.

Foi a partir dessa proposta que surgiram os manifestos individuais dos sete atores que construíram e encenam a montagem, Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara. Na versão final, apenas dois dos textos são interpretados em cena, ?mas todos os outros estão costurados dentro dos diálogos da peça?, diz Marcio. Além da fala de Teuda, Eduardo Moreira dá voz ao seu ?Manifesto do homem bomba??, que reflete sobre um homem que decide se explodir.

? Ele clama por Deus e se deixa levar por uma crença até o ponto em que se explode, sai desse plano, e deixa de existir ? diz.

Caso peculiar na trajetória do grupo, ?Nós? é uma dramaturgia construída coletivamente pelos atores, e cuja versão final leva a assinatura de Marcio e Eduardo.

? O Galpão é um grupo que tem uma solidez e uma importância muito grandes no teatro brasileiro, e eu queria que isso se manifestasse, que eles refletissem o tempo que o país vive ? ressalta Marcio. ? Foi por isso que começamos a pensar em que respostas podíamos dar ao mundo a partir de como as questões do país nos chegam.

Teuda dá um exemplo:

? Fiquei chocada com o crime da Samarco, mas o que eu posso fazer? Posso ir lá e dar um tiro no sujeito, posso ir lá e dar um tapa na cara? Eu não consegui fazer muita coisa, então escrevi esse texto, o ?Manifesto contra a minha própria inércia?.

Um dos grandes emblemas do grupo mineiro, ela é o centro do novo espetáculo, que gira em torno de um encontro de sete pessoas numa mesa de cozinha. Enquanto preparam uma sopa, essas pessoas ? não se sabe o grau de relação entre elas, seus nomes ou suas profissões ? partilham suas angústias, esperanças e muitos nós. É a partir do que dizem que fica evidente o caráter politizado da peça, a primeira do grupo a se aproximar de modo mais direto do gênero político.

Fiquei chocada com o crime da Samarco, mas o que eu posso fazer? Posso ir lá e dar um tiro no sujeito, posso ir lá e dar um tapa na cara? Eu não consegui fazer muita coisa, então escrevi esse texto

? A política perpassa outros trabalhos do Galpão, mas aqui existe uma urgência ? explica Eduardo. ? É o nosso trabalho mais direto, foi feito para o agora. As pessoas se identificam, riem e se emocionam. O Galpão está cortando a carne das pessoas, mas sem perder a teatralidade.

A escolha é uma guinada temática e formal na trajetória artística da companhia, que marcou o seu lugar no panorama cênico do país apostando num teatro popular, que recriava clássicos (Molière, Shakespeare, Brecht, Pirandello) a partir da mescla de tradições visuais e sonoras brasileiras com as linguagens da commedia dell?arte (técnicas de máscara e de clown, entre outras). A partir do encontro com o diretor Gabriel Vilella, por exemplo, espetáculos simples e suntuosos ? como o seminal ?Romeu e Julieta? (1992) e o recente ?Os gigantes da montanha? (2013) ? moldaram uma forma teatral lúdica, plena de metáforas, alegorias e simbolismos.

Agora, porém, o Galpão que se vê e que se ouve é outro. Sob a direção de Marcio (?Krum? e ?projeto brasil?), a cena está despojada, do cenário de Marcelo Alvarenga aos figurinos de Paulo André: uma mesa de madeira, alguns utensílios de cozinha, alimentos dispostos na mesa, roupas cotidianas. Além da composição visual, a forma e o conteúdo do texto, assim como o modo de os atores pronunciarem suas falas, soam como certa novidade no percurso do grupo. Tudo parece mais direto, como os temas discutidos em cena exigem. Em ?Nós?, os atores não contam uma história e nem interpretam personagens para ecoar temas contemporâneos como racismo, violência e intolerância em relação a minorias e a diferenças de credos e culturas.

? São ecos das vozes das ruas, mas o mais importante é a forma como as coisas são ditas ? diz Marcio. ? O Galpão e esses atores já fizeram de tudo, experimentaram formas diversas, mas conseguimos construir juntos algo diferente do que eles vinham fazendo. Rompemos alguns paradigmas, um tipo de teatralidade mais alegórica, mas ainda é o Galpão.

E também é Marcio Abreu.

? Sempre trabalhamos com diretores convidados, e já houve casos, como em ?Eclipse? (dirigida pelo russo Jurij Alschitz), em que a estética encontrada foi mais uma imposição ? pondera Eduardo. ? Neste caso, não. O que existe é uma mistura de linguagens que são diferentes, mas convivem em harmonia.

Assim como, ressalta, a democracia deveria ser.

? O cerne da democracia é a harmonização entre elementos diferentes. Isso está na forma do espetáculo. E enquanto ele se desenrola, observamos a forma como as pessoas lidam com as suas diferenças, com a vontade da maioria, com o respeito à minoria. No fim das contas, investigamos a democracia.

URGÊNCIA INTERNAS DA CIA. LUNA LUNERA

Além do Grupo Galpão, que é a principal referência do teatro de grupo de Minas Gerais, outro coletivo mineiro retorna ao Rio nesta sexta-feira, e também de olho em urgências. Nova criação da Cia. Luna Lunera, ?Urgente? estreia no CCBB do Rio (3808-2020) após uma primeira temporada em Minas. A relação entre as duas cidades foi estabelecida durante todo o processo criativo da montagem, criada pelos atores Cláudio Dias, Isabela Paes, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Zé Walter Albinati, que tiveram a direção de Miwa Yanagizawa e Maria Sílvia Siqueira Campos, integrantes do grupo carioca Areas Coletivo de Arte. Em ?Urgente?, não são bem os temas políticos e sociais que tomam a cena, mas a necessidade premente de por em prática planos e ideais alimentados pelos personagens num contexto em que o tempo parece passar cada vez mais rápido, e a vida, cada dia mais curta. A dramaturgia, criada na sala de ensaio com interlocução do escritor Carlos de Brito e Mello e da atriz Liliane Rovaris, investiga as ansiedades pessoais e coletivas dos personagens, que buscam distinguir suas verdadeiras urgências das criadas pela contemporaneidade.

Serviço ? ?Nós?:

Onde: Sesc Ginástico ? Av. Graça Aranha, 187, Centro (2279-4027).

Quando: Estreia sexta-feira. De qua. a sáb., às 19h; dom., às 18h. Até 10 de julho.

Quanto: R$ 20.

Classificação: 16 anos.