Cotidiano

Garantia do cidadão

A Constituição de 1988, conhecida como Carta cidadã, é uma das mais avançadas do mundo ocidental, notadamente em relação à tutela dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Entre esses direitos, emerge o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, inciso LVII, de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, postulado consagrado em todos os documentos internacionais de direitos humanos.

Inobstante a clareza do texto constitucional, o STF, em julgamento de habeas corpus, fixou o entendimento de que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial e extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência”.

O referido julgado operou guinada radical da orientação jurisprudencial inaugurada em 2009, que declarara a inconstitucionalidade da “execução antecipada da pena”, por ser “incompatível com o texto da Constituição”. Nesse sentido, a nova posição representa verdadeiro retrocesso na (re)afirmação das garantias constitucionais do cidadão, além de se chocar frontalmente com a literalidade do comando constitucional, afetando a segurança jurídica, visto que a jurisprudência anterior não contava sequer com dez anos de sedimentação.

Percebe-se que, em nome de uma suposta “expectativa da sociedade” de combate à impunidade, flexibilizou-se o texto constitucional, apoiando-se no binômio velocidade/efetividade do sistema recursal penal, colocando em segundo plano os deletérios efeitos antecipados do cárcere sobre o cidadão, que ainda dispõe de recursos para reformar condenação que não é definitiva.

Caso seja o intento de se racionalizar os recursos, tal discussão deve ser levada ao locus apropriado, qual seja, o parlamento brasileiro, como Proposta de Emenda à Constituição acerca da extinção dos recursos especial e extraordinário. No que se refere à velocidade da Justiça, deve-se refletir acerca da estrutura dos tribunais do país, devendo-se destacar que já há mecanismos na jurisprudência dos tribunais superiores que põem fim a recursos protelatórios.

O que não se pode conceber é diminuir o cidadão ante a incapacidade estrutural estatal. A importância de se aguardar o trânsito em julgado da condenação deriva do fato de se evitar que alguém seja encarcerado precocemente enquanto há perspectiva real de modificação da condenação, seja no mérito ou na fixação de pena, ante ao considerável grau de reversibilidade das decisões pelos tribunais superiores. Nessa esteira, oportuna passagem do voto do ministro Marco Aurélio: “(…) perdida a liberdade de ir e vir, vindo o título condenatório a ser alterado mediante recurso, há como se devolver ao condenado a liberdade perdida?”

É imperioso que o STF reafirme sua função de guardião dos direitos e garantias fundamentais, conquistas civilizatórias tão caras à sociedade.

Diogo Tebet, advogado criminalista, é presidente da Comissão de Processo Penal da OAB-RJ