Cotidiano

Flip: Plateia sai de debate com desafio de explorar a cidade onde mora

PARATY ? A plateia que assistiu a mesa de debates “Cidades refletidas”, que propunha uma reflexão sobre a experiência urbana nas cidades, com o arquiteto italiano Francesco Careri e a arquiteta pernambucana Lúcia Leitão, saiu da Tenda dos Autores com uma tarefa, quase uma missão de vida: mudar radicalmente a maneira de explorar a cidade em que moram. E encarar o exercício como uma “prática democratizante”. Fazer a pé trajetos que costumam fazer de carro. Percorrer o sentido contrário das vias que usam normalmente. Até pular muros de propriedades privadas.

? Se eu fizesse nos Estados Unidos o que costumo fazer com meus alunos na Itália, certamente seria preso ? comentou Careri.

No curso de ?Artes Cívicas” que ele dá em universidades italianas os alunos de arquitetura e urbanismo percorrem com ele a cidade a esmo, sempre passando por caminhos improváveis ou aparentemente inacessíveis, para, na prova final da disciplina, propor uma intervenção em algum espaço.

? Há lugares que nós apagamos do nosso mapa mental ao andar de carro, por exemplo. É o que chamo de “amnésia urbana”. É preciso entender que existem regiões de sombra, uma parte escondida no inconsciente da cidade, que, aliás, sempre foram usadas pelas vanguardas artísticas. Existem fenômenos urbanos que não estão nos livros de urbanismo, porque são muito móveis, se deslocam. E a única maneira de investigar isso, entender a cidade, é se perder.

Para Careri, ?se perder? significa ?sair de casa com espírito explorador, para descobrir os ?sistemas de autoorganização? que a maioria de nós desconhece.

? A melhor maneira de conhecer uma cidade é passar por cima, o “trespassing”, que é uma ação ilegal, aliás. Eu sei que no Brasil falar disso é perigoso, a cidade é mais dura, é mais violenta. Mas fiz isso em São Paulo, em Salvador, e estou vivo! Todos nós devemos explorar a cidade dessa maneira, baixar a sensação de medo que nos limita numa sociedade de controle contínuo.

CRÍTICAS A BRASÍLIA

Lúcia promove ações parecidas com seus alunos em Pernambuco e reforçou que a prática é também democratizante, pois coloca os habitantes “face a face com o outro”:

? Andar na cidade é obrigatoriamente ter o outro em face. A experiência mostra como essa sociedade se organizou, quão democrática ela é. Uma cidade que não tem lugar para caminhar é um equívoco, é uma cidade que não tem lugar para a alma ? pontuou Lúcia

Para ilustrar o raciocínio, ela cita uma imagem na TV que a impressionou há pouco tempo.

? Aquela imagem de Brasília durante o afastamento da presidente democraticamente eleita Dilma Rousseff (neste momento, a plateia aplaude energicamente a convidada) é muito simbólica: o muro erguido entre os presentes, diante do Palácio do Planalto, um muro erguido entre pessoas, impedindo que se vissem, que se acessassem, é a mostra da nossa dificuldade de encontrar o outro. Isso reflete como somos uma sociedade mais pobre, menos capaz de expressar nossa democracia. Neste sentido, a arquitetura brasileira nunca foi neutra. Nós reproduzimos na cidade os valores da casa grande, que evita o outro. A gente se habituou a viver o espaço privado. Neste sentido, o condomínio, o shopping, são construções que prestigiam o espaço privado e fragilizam o espaço público, que é a rua.

Lucia, que estuda a relação entre psicanálise e arquitetura, e de que forma o “eu” subjetivo é parte indissociável da arquitetura moderna (citou Drummond ao explicar a formação: “A cidade sou eu”), relutou ao dar a sua opinião sobre a cidade de Brasília, quando questionada pela plateia, mas não resistiu:

? Juro que eu não queria falar sobre Brasília. Eu não sei se Brasília foi feita para as pessoas. Ou talvez ela tenha sido feita para um grupo seleto de pessoas. Brasília reflete mais fortemente o que falei aqui sobre equívoco. Na minha opinião, Lucio Costa e Niemeyer cometeram um equívoco ao não perceber que propunham uma sociedade igualitária para uma sociedade patriarcal e patrimonialista em excesso. Essa ideia de que o ministro seria vizinho do seu motorista era uma utopia. Isso não se realizou. O viajante que chega pela primeira vez lá já percebe claramente onde moram os senhores e onde moram os escravos. Uma crítica de Rubem Alves que reproduzo aqui: se os arquitetos tivessem estudado um pouco de psicanálise, não tinham feito Brasília. É uma cidade feita pro carro, que não acolhe, um equívoco claro. Do ponto de vista da forma, é belíssima, um conforto para os olhos, alguém já disse que Niemeyer é o poeta do concreto. E aqui eu paro sobre Brasília (neste momento, Lúcia é bastante aplaudida).

Quando Careri comentou que não conhecia Brasília, o mediador, Angel, foi rápido:

? Você deveria organizar uma caminhada por Brasília! Uma caminhada chamada “passeata”! ? sendo ovacionado pela plateia.

Questionado sobre a falta de organização da Europa para receber refugiados, Careri foi incisivo:

? É preciso culpar a Europa e a ONU, que não falou nada ainda sobre isso, por esse genocídio dos refugiados que está acontecendo. Este ano tivemos barcos em que morreram 600 pessoas juntas no mar. Isso acontece todos os dias. A situação é divulgada como se não pudéssemos fazer nada. E não é verdade. É preciso resgatar essas pessoas antes da partida. Precisamos organizar nossas cidades em bairros para recebê-los, onde esses cruzamentos de cultura possam enriquecer nossas sociedade. Mas as pessoas não estão entendendo e não estão se organizando. Ou construímos cidades acolhedoras ou continuaremos vendo isso todos os dias.