Cotidiano

Flip: ?Escrevendo, me sinto como Maradona?, diz Álvaro Enrigue

PARATY ? Numa mesa de debates morna, a primeira sobre ficção desta Flip, a discussão ficou centrada a maior parte do tempo no processo de escrita dos dois livros que os autores convidados vieram lançar na Flip, o mexicano Álvaro Enrigue (que lança pela Companhia das Letras o romance “Morte súbita”) e o brasileiro Marcílio França Castro (que lança pela mesma editora a coletânea de contos “Histórias naturais”). Os momentos mais animados foram protagonizados por Enrigue, que empolgou-se ao contar como teve a ideia para o livro, cujo protagonista é o pintor barroco Caravaggio (1571-1610): Links Flip Mesas Dia 2

? A estrutura parece estranha, o meu editor ao ler me disse: “Álvaro, você não consegue fazer um livro normal?”. O protagonista é Caravaggio, um sujeito fascinante: ele era abertamente homossexual no século XVI, foi o primeiro artista moderno da história, tinha problemas com a Justiça, e sabemos mais dele do que ele mesmo! É o primeiro artista que decide que o importante numa obra é o processo, não a obra em si. É como escrever sobre Keith Richards, é fascinante. Sempre quis escrever um romance sobre ele. Além de tudo, pesquisando sobre ele, descobri que foi um criminoso espetacular e, surpreendentemente, um excelente tenista. Juro! Tentei escrever uma história sobre ele muitos anos. E de repente ela se materializou na minha cabeça: a historia de uma serie de objetos organizados ao redor de Caravaggio ? detalhou Álvaro, depois de ler um trecho do romance, que, no entanto, era diferente do que fora distribuído à plateia.

Ao ler um trecho de um dos contos de “Histórias naturais”, em que o narrador vive a persona de diversos escritores, Marcílio contou que teve a ideia quando ouviu uma história curiosa de um amigo: jornalista, o sujeito havia sido dublê de mãos num filme sobre um escritor, pelo fato peculiar de datilografar muito rapidamente.

? Eu achei aquilo muito estranho, imagina você ser dublê de mãos de um escritor! Era um personagem pronto. Eu adoro os copistas, os escribas, essa família é muito querida pra mim. Eles têm uma posição de âncora privilegiada pela narrativa. E quando um personagem se despe da autoridade, está livre para criar. A autoridade engessa o personagem. E eu gosto de lidar com essa possibilidade de criação que parte de um lugar comum ? disse Marcílio.

Seguindo a troca autorreferente, os dois falaram sobre métodos de trabalho: Marcílio admitiu ser mais cartesiano, um revisor obsessivo (“para mim, não existe isso de escrever 20 páginas numa noite, escrevo, no máximo, dois envelopes de contas”); e Álvaro, mais explosivo (“eu só escrevo um mapa com meu trabalho, o leitor é quem gera a série de imagens na sua cabeça”). Depois, Marcílio mostrou-se desconfortável ao ser chamado de contista:

? A premissa da escrita é a liberdade da forma. O gênero conto não tem me agradado tanto para definir a ficção que tenho feito. Algumas coisas são notas, comentários… A definição de contista não me serve. A recepção do termo “conto” limita o livro.

Mediador do debate, o jornalista Angél Gurría Quintana provocou:

? Mas você ainda não escreveu nenhum romance, só contos…

Álvaro Enrigue retomou o debate:

? A palavra chave aqui é “jogo”. Se não fosse um jogo, uma forma, a escrita do romance para mim seria muito chato. Meu trabalho seria muito chato se não tivesse ao final o processo de reescrita, o livro não se desprega de uma história, ele é construído a partir de fragmentos. Creio que a literatura latino-americana seja a mais experimental do último século, muito mais do que a europeia e a norte-americana, que é muito formal. E há momentos em que você tem “golpes de gênio”, de inspiração, não é verdade? O romance começa a se articular sozinho.

? Às vezes o jogo é descobrir qual é o jogo ? completou Marcílio.

Quando Ángel perguntou a ambos se o o processo de escrita era prazeroso ou uma tortura, Enrigue arrancou algumas risadas da plateia:

? Adoro meu trabalho. Odeio cada minuto que passo em sala de aula pensando que poderia estar escrevendo no meu estúdio. Numa sala de aula não posso fumar, não posso beber cachaça, tenho que usar calça e sapato. Ser escritor é o melhor trabalho do mundo ? afirmou o mexicano, comparando seu ofício à jogada clássica de Maradona nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986, quando driblou quase a seleção da Inglaterra inteira para fazer o gol da partida. ? Às vezes, escrevendo, eu me sinto como Maradona naquela partida.