Esportes

Final dos 100m rasos fará história neste domingo no Engenhão

Serão pouco menos de dez segundos, às 22h25 desta noite, em que o mundo estará parado, com os olhos para os 100m rasos de pista do Engenhão, sob o impacto de ver a consagração definitiva de Usain Bolt, num inédito tricampeonato olímpico da prova que coroa o homem mais rápido do mundo, ou ? o que talvez seja ainda mais histórico ? assistir à derrota de quem carrega a aura de imbatível.

É muito mais do que o frisson de ver a disputa mais ansiada dos Jogos. Os 100m rasos para homens são a prova mais rápida de todo o programa olímpico e, na atual conjuntura, concentram uma dicotomia que pode impactar a história (e os negócios) do atletismo e do esporte por muitos anos. De um lado, o magnetizante astro jamaicano, idolatrado mundo afora, de boa e cuidada imagem, a maior máquina humana de corrida de todos os tempos e motor do marketing olímpico. Num cenário em que seu principal rival, Justin Gatlin, campeão olímpico da prova em Atenas-2004, é um americano que já cumpriu duas punições por doping, completa-se o quadro de um indisfarçável duelo de arquétipos.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) não admitem publicamente, mas torcem por Bolt. Quando estourou o escândalo de doping na Rússia, a IAAF esteve diretamente envolvida em casos de corrupção e acobertamento de amostras positivas. Pressionada, a entidade suspendeu toda a delegação russa do esporte, e o COI estendeu o banimento do Rio-2016 a qualquer atleta russo que já tenha cumprido suspensão por doping. Nas primeiras reações, os russos citaram o nome de Gatlin, uma das estrelas dos Jogos, com passado manchado. Sua vitória pode afetar a credibilidade ? e o faturamento ? do atletismo mundo afora nos próximos anos. Nas últimas semanas, tanto o presidente do COI, Thomas Bach, quanto o da IAAF, Sebastian Coe, se posicionaram pessoalmente a favor do banimento vitalício para casos de doping, embora esta não seja a regra atual.

? Sobre o Gatlin, não posso mudar de opinião. Continuo a favor do banimento vitalício, mas ele está elegível para competir e deve ser tratado com a mesma cortesia que os outros ? disse Coe na semana passada.

Se os cartolas torcem (quase) às escondidas, o público não esconde sua preferência. Aos 29 anos, Bolt é um raio de carisma. O Engenhão encheu na manhã de ontem para vê-lo correr nas eliminatórias dos 100m. Recuperado da recente lesão, venceu sua bateria sem sustos (10s07), com o quarto melhor tempo entre os 24 classificados para as semifinais (serão três provas, a partir das 21h de hoje, que definirão os oito da final).

BOLT BRINCA: ?ME SENTI MEIO LENTO?

A cada passada de mão sobre a cabeça exibida no telão, o Engenhão vinha abaixo. Marca registrada, não faltou a desacelerada antes de cruzar a linha final, de modo a mostrar como foi fácil. Assim que os atletas se ajeitaram no bloco de partida da bateria de Bolt, o público no Engenhão ficou de pé, e assim acompanhou a prova, primeiro em silêncio, a pedido do jamaicano segundos antes da largada, e depois num estouro de barulho e gritaria.

Perguntado sobre a possibilidade ? considerada inexistente por todos ? de igualar seu sobre-humano recorde mundial de 2009 (9s58) e sobre o tempo feito na eliminatória, Bolt brincou e revelou que não gosta muito de correr de manhã (sua prova foi já depois do meio-dia):

? Meu recorde é muito bom. Não foi o meu melhor início. Eu me senti meio lento. Não estou acostumado a correr de manhã. Espero que amanhã (hoje) eu me sinta melhor e mais leve ? disse o jamaicano. ? Eu não ter feito o melhor tempo é bom pra eu chegar mais motivado nas finais. Minhas pernas estão muito bem.

GATLING ELOGIA TORCIDA E EVITA TEMA DOPING

Mostrar-se tranquilo faz parte da guerra psicológica antes de uma prova em que cada detalhe é decisivo, mas Bolt sabe que jamais esteve tão ameaçado. Se a grande maioria parte das cerca de 50 mil pessoas que estarão no Engenhão nesta noite vão ao estádio desejando muito mais um show de Bolt ? com dúvidas apenas sobre que tempo ele fará para vencer ?, quem acompanha o atletismo mais de perto sabe que não é bem assim.

Gatlin foi suspenso por doping duas vezes depois de já ter sido campeão olímpico em 2004. Voltou em Londres-2012, quando foi bronze na prova em que Bolt ganhou ouro (o também jamaicano Yohan Blake foi prata). Mas, curiosamente, é na fase atual, com 34 anos, que Gatlin tem feito os melhores tempos. No ano passado, cravou 9s74, sua melhor marca pessoal. E, há exatamente um ano, no Mundial de Pequim, quase bateu Bolt. Mas quase mesmo: Gatlin cruzou a linha de chegada apenas um centésimo de segundo após o jamaicano, que teve de se esforçar ao máximo para se manter imbatível.

Este ano, Gatlin lidera o ranking com o melhor tempo (9s80), e Bolt tem 9s88, em 11 de junho. O desta noite talvez seja o último duelo entre os dois. Bolt pode querer se aposentar ao se tornar o primeiro tricampeão olímpico dos 100m na história. E é incerto que os dois cheguem, no auge da forma, ao Mundial de Atletismo de 2017, em Londres.

Estandarte mais visível, e útil, do discuso antidoping, Gatlin evita encarnar o papel de vilão. Nem de longe tem o talento e o carisma de Bolt para o marketing, mas tenta ser simpático. É um atleta com faro de competição ? ao contrário de outros velocistas do primeiro time, raramente se ausenta das etapas do circuito mundial. Não custa lembrar que, se vencer hoje à noite, será bicampeão olímpico como Bolt. Ontem, fez o melhor tempo entre todos das eliminatórias (10s01). E elogiou a atmosfera do Engenhão.

? Sei que é um estádio de futebol, né? É um prazer, muito especial correr com este público: estava um clima muito bom. Não é o maior estádio olímpico em que eu já estive, mas é um dos mais empolgantes, por conta das pessoas que aqui estão ? disse, após sua bateria.

Como sempre faz, Gatlin se recusou a se estender no assunto doping, mas mais uma vez foi abordado na coletiva.

? Não sei, não me preocupo com isso. Confio no sistema e nas regras. Sou testado como todo mundo e voltei aqui ? afirmou, dando a entrevista por encerrada.

CANDIDATOS A ZEBRA

A final dos 100m, porém, não é apenas Bolt e Gatlin. Há candidatos fortes na disputa pelo bronze e mesmo por roubar a cena dos dois protagonistas, e todos passaram bem pelas eliminatórias de ontem. O jovem Trayvon Brommel, de 21 anos, bronze no Mundial de 2015, para muitos tem potencial de quebrar qualquer prognóstico. Com 9s84 na seletiva americana, ele tem o segundo melhor tempo da temporada. O francês Jimmy Vicault, o canadense Andres De Grassi e o jamaicano Yohan Blake são os outros nomes que podem aparecer no pódio.