Cotidiano

Filme de Felipe Bragança aborda romance adolescente em tom fabular

RIO – O cinema autoral brasileiro começa 2017 com o pé direito. Selecionado pelo Festival de Sundance (19 a 29 de janeiro), importante vitrine do audiovisual independente, ?Não devore meu coração?, de Felipe Bragança, será exibido na mostra competitiva World Cinema, que reúne 12 filmes estrangeiros de cineastas emergentes. E o diretor carioca está nas nuvens.

? Sundance tem um perfil muito específico, pois coloca na linha de frente cineastas que estão trazendo algum tipo de novidade em termos de estilo e experimentações que dialogam com o cinema contemporâneo ? diz Bragança. ? Meu filme trabalha com uma chave poética e autoral, mas também dialoga com a tradição narrativa.

?Que horas ela volta??, de Anna Muylaert, foi exibido em 2015 na mesma mostra, de onde saiu com o prêmio de melhor atriz, dividido por Regina Casé e Camila Márdila. Foi o pontapé para uma carreira bem-sucedida: o filme chamou a atenção da crítica internacional, foi selecionado para outros festivais estrangeiros e representou o Brasil na corrida pelo Oscar, embora tenha ficado de fora da seleção final. Outros longas de ficção exibidos na mostra foram ?A busca? (2012), de Luciano Moura, ?O cheiro do ralo? (2006), de Heitor Dhalia, e ?Carandiru? (2003), de Hector Babenco.

INTEGRAÇÃO DO LONGA COM A CIDADE

Rodado no município de Bela Vista (MS) e inspirado em contos de Joca Reiners Terron, ?Não devore…? (previsto para estrear no segundo semestre de 2017) narra a história de amor entre o jovem Joca (interpretado por Eduardo Macedo), um garoto de 13 anos, e Basano (Adeli Benitez), uma menina indígena que mora na fronteira entre Brasil e Paraguai. Disputas de terras na região servem como pano de fundo para esse romance. Cauã Reymond interpreta o tio do menino, num elenco que tem ainda a participação de Ney Matogrossso.

Esse é o primeiro longa solo de Bragança, que antes havia dividido com Marina Meliande a direção de ?A fuga da mulher-gorila? (2009), premiado como melhor filme na Mostra de Tiradentes, e ?A alegria? (2010), selecionado para a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Seu primeiro trabalho no cinema foi como um dos roteiristas de ?O céu de Suely? (2006), de Karim Aïnouz. De certa forma, ?Não devore…? é resultado de todas essas experiências.

? Na época de ?O céu…?, eu me instalei no interior do Ceará. Com ?Não devore…?, estou revisitando meu processo de imersão num espaço, só que, agora, como diretor ? diz. ? Depois de ?A alegria?, que fala sobre o imaginário de um adolescente no Rio, queria voltar a esse tema e à maneira como ele pode pensar o nosso país, agora de modo fabular.

Daí, surgiu a necessidade de deixar a capital fluminense e explorar a fronteira entre os dois países, para onde Bragança fez viagens frequentes nos últimos quatro anos. Foi uma verdadeira pesquisa de campo: conversou com a população local, estudou a Guerra do Paraguai e construiu uma intimidade geográfica com Bela Vista ? em certo ponto, os moradores já estavam familiarizados com a presença de Bragança, a ponto de se referirem à produção como ?o filme do Felipe?:

? Eu sentia que a integração entre o filme e a cidade era algo essencial. A região foi palco de uma das maiores batalhas da guerra, cuja memória ainda é muito presente. Há ruínas espalhadas, e as pessoas ainda falam sobre os massacres de antepassados. Lá, a convivência entre brasileiros e paraguaios é carregada de desconfiança. O filme tem esse tom: ainda que não fale de guerra, aborda as relações de poder, inclusive dentro de um romance adolescente.