Cotidiano

Fernando Galrito, professor: 'Alguém quer que a gente faça tudo de forma igual'

“Tenho 56 anos e nasci em Samora Correia, a 30km de Lisboa. Havia uma oficina da criança, ligada à biblioteca. Lá, eu e meus amigos crescemos lendo. Aos sábados, alguém nos ensinava alguma arte. Aos oito anos fiz meu primeiro filme de animação. Aos 16, estreei num festival e, aos 25, fui o primeiro português a ganhar um prêmio neste festival.”

Conte algo que não sei.

Só o cinema de animação envolve todas as artes. Meus amigos de cinema dizem ?o cinema também?, e os de teatro dizem “o teatro também”. Mas o cinema de animação é o único que cria a ilusão de movimento. O cinema de imagem real usa o movimento dos atores ou da natureza, o teatro, o dos atores no palco. Já o cinema de animação, além de ter música, pintura, criação, objeto, estátua e escultura, tem essa capacidade de recriar o movimento, e de, através dele, criar sensações tão fortes quanto grandes atores na tela do cinema ou no palco do teatro.

O senhor usa o cinema de animação para educar crianças. Como ele pode transmitir conhecimento de forma mais eficiente do que os métodos tradicionais da educação?

Você pode oferecer um “flipbook” para uma criança ou um idoso e a reação é a mesma: um sorriso imenso. Como é que um monte de folhas amontoadas de repente criam a ilusão de movimento? Tem um lado mágico. Sabermos que não é verdade, mas, mesmo assim, isso consegue nos tocar. Dizem que o conhecimento é o que nós lembramos depois de esquecer tudo que aprendemos. O cinema de animação é um pouco isso: deixa dentro de nós algumas imagens; mas, como são imagens mágicas, acabam nos marcando muito mais.

A educação deve seguir mais por esse caminho alternativo de se transmitir conhecimento e menos pelas formas convencionais?

Só pode ir por aí. Não podemos manter o ritmo monocórdico de hoje. Não questiono a importância dos mestres na sabedoria e na transmissão, mas é necessário cativar as pessoas com outros meios de aprendizagem.

Qual é a influência da tecnologia nessa mudança?

É claro que eu gostaria que as crianças tivessem a tabuada memorizada, mas, se tenho a ajuda de uma máquina que resolve problemas mais complexos, não preciso saber tudo de cabeça. Então, vou usar essa parte da minha memória com outro conhecimento. Precisamos dar às pessoas a informação básica, fundamental, mas também deixar espaço para que possam criar.

E isso está sendo feito hoje?

Há uma coisa que me preocupa muito: cada vez mais, se fecha o espaço dedicado às artes e à filosofia nas escolas. Se olharmos a História, só essas duas coisas realmente fizeram a diferença e criaram transformação e revolução (no bom e no mau sentido). E não se percebe por que essas disciplinas tão essenciais estão sendo banidas. Ou então percebe-se: alguém quer que a gente faça tudo de forma igual. Essa é a luta que precisamos travar quando fazemos oficinas de arte com crianças. Temos que dizer: ?Claro que dá para fazer assim, isso é possível, tente.”

A mudança nos currículos está inibindo a criatividade?

De certa forma, sim, No entanto, há muita gente que tenta burlar o sistema e conseguir manter ativa essa chama. O ser humano é, por natureza, inventivo e criador. Porque, se não, todos ainda estaríamos no tempo da pedra lascada. Há um exemplo fantástico: uma vez, fiz uma oficina com pais e filhos fazendo papagaios de papel. Os únicos que voavam eram os feitos pelas crianças. Os pais faziam papagaios muito bonitos, mas pesados, e tinham medo que se quebrassem. A criança não tem medo que o seu papagaio se quebre. A capacidade delas de não ter medo de avançar é o que é importante, e é o que espero que o ser humano sempre mantenha no seu espírito.