Cotidiano

Fernanda Montenegro: ?Cada um faz o teatro que pode?

INFOCHPDPICT000007452154RIO ? Há dois anos, Fernanda Montenegro tem rodado o país lendo sua nova peça, ?Nelson Rodrigues por ele mesmo?, que ela própria roteirizou a partir do livro homônimo de Sônia Rodrigues, filha do dramaturgo. Enquanto não obtém patrocínio para encenar o trabalho, que pretende dirigir, a atriz tem intensificado sua agenda de encontros. E, para encerrar o ano, faz neste sábado duas sessões gratuitas na Cidade das Artes, às 18h e às 20h, dentro do projeto Natal de Portas Abertas ? também pelo projeto, Marco Nanini e o elenco da Cia. Atores de Laura realizam, às 15h30m, uma leitura dramatizada de ?Ubu Rei?, de Alfred Jarry.

O que balizou a escolha dos textos?

São as passagens dolorosas, trágicas, patéticas e contundentes, mas que trazem aquele ganho de sobrevivência que advém do pior, do inesperado trágico. Nelson nunca escondeu a carga trágica da sua vida, mas sempre uniu a isso uma fala direta, popular sem ser populista. Nunca fugiu da meleca, da baba, da saliva. O que ele diz nos interessa porque gera identificação. Somos nós ali, naquelas falas. Há um reconhecimento imediato.

Apesar de ter convivido com Nelson, foi possível descobrir algo a mais sobre ele, a partir do livro?

Sim. ?Aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo?, diz ele, num trecho do livro. É uma frase poderosa. É o que a gente quer e precisa. Aprender a ser o máximo possível da gente mesmo. Ao passar pelos desafios que passou, ele aprendeu a ser o máximo de si, e isso é de grande comoção. Afinal, trata-se do desafio de viver e sobreviver ao que é ruim, e fazer disso uma afirmação de vida. Não é aceitação, mas reconhecer e exaltar a si.

Desde 2013, a senhora planeja encenar e dirigir esse roteiro. Por que até hoje isso não se tornou possível?

Acontece o seguinte, o teatro da palavra está nas catacumbas. Hoje, o apoio a esse teatro ? não falo de musical ? está muito modesto. Sou da época em que se fazia texto enorme, peça com grande elenco, e isso não é mais possível. O que há, sempre, é um grande esforço de não parar, e se vive de fazer TV, cinema, dublagens, eventos… E aí, no fim da semana, se fazem umas sessõezinhas praqueles que ouvem falar que aquilo é bom, que vale a pena. Sou da geração do teatro feito de terça a domingo, com duas sessões na quinta, três no sábado, duas no domingo. Isso não é mais possível.

Mas, então, o que falta para a peça é patrocínio e, também, o ator certo?

Há três anos, chamei um ator que se comprometeu por dois anos, mas acabamos não fechando. Houve mais dois que, por conta de outros trabalhos, não puderam fazer. Havíamos conseguido verba, pequena, da Secretaria Estadual de Cultura para a peça, e decidimos devolver o dinheiro. Mas eles nos sugeriram seguir tentando, e então decidi realizar as leituras gratuitas com o público. Já fizemos 25 sessões, principalmente pelo subúrbio do Rio, e tem corrido muito bem. Sinto que até hoje há uma devoção impressionante pelo Nelson. Não só dos mais velhos, mas também dos jovens, que o conhecem, leem suas peças. O que ele escreve é, ainda hoje, muito instigante. São textos misteriosos, propiciam diferentes leituras.

Mas para montar a peça, chegou a tentar patrocínio via Lei Rouanet?

Não. Há dez anos não uso o mecanismo, mas de jeito algum o condeno, só tentei outro caminho. E surgiu este formato. Uma leitura simples mas, também, um retorno às origens do teatro: alguém que fala e o outro que escuta. Temos apenas uma cadeira, uma mesa e um spot de luz, para o texto. Sem nada, absolutamente. É leitura. Sujeito, verbo e predicado. E terminada essa viagem que faço com Nelson, retorno para conversar com a plateia. Seguiremos assim até poder encenar a peça com um ator. Mas, sobre o ator, o que acontece é que, dada a carência econômica do teatro da palavra, vejo os atores comprometidos com outras formas de sobrevivência. E não é para ter apartamento com piscina, não, é para comer mesmo. Então, em meio a essa emergência, seguimos pelas catacumbas, fazendo o teatro que se pode fazer. É bom dizer que ele não morreu. Está vivo. Cada um faz o teatro que pode.

A senhora conviveu com Nelson e trabalhou com seus textos durante os anos 1960, no início da ditadura. Como era lidar com um autor alinhado à direita, aos militares, nesse período?

Fazer teatro com os militares era assustador e calamitoso, principalmente em relação à liberdade de expressão, totalmente bloqueada. Sobre o Nelson, quando fizemos ?O Beijo no Asfalto? (1961), não tomamos conhecimento do lado reacionário dele. Focamos na obra, liberta, instigante. Suas peças eram desafios cênicos e existenciais. ?O beijo…? foi um estrondoso sucesso, mas também fomos criticados. Não pelo viés político, mas por razões morais, comportamentais. Sempre dois ou três se levantavam para protestar pela família brasileira, acusando Nelson de ser tarado, pedindo proibição. Ninguém se levantava para contestá-lo por ser de esquerda ou de direita. Eram questões morais. Depois, houve uma situação política mais difícil e um movimento de muita resistência aos militares. Nesse contexto, fiz o filme do Leon (Hirszman) a partir de ?A Falecida? (1965). Aí, embora houvesse atrito entre Nelson e Glauber (Rocha), ouvi do Glauber elogios a Nelson como o criador desse estupor que é se ver. O brasileiro vendo o brasileiro. Tanto é que Leon, que era do Partido Comunista, e um homem não radical, pegou ?A Falecida? e transformou numa denúncia social e existencial.

O dramaturgo, portanto, era maior? Podia ser lido de diferentes modos?

O Nelson é isso. É bom lembrar que Nelson chega a essa direita por uma vida em que foi sempre renegado, à margem, como pessoa e como criador. Era o Anjo Pornográfico, alcunha que antecede sua adesão à direita. Hoje parece até que é elogio, mas, há 50 anos, pornográfico era antifamília, antidignidade, anti-Brasil e antiarte.

Ele levava à tona o não dito, o proibido, que tabus, a seu ver, Nelson ajudou a quebrar?

A linguagem, com ele, tornou-se mais real, solta. Em ?O beijo…?, trouxe termos como ?gilete?, insinuações de que o personagem principal era homossexual. Além disso, o sogro, que todo mundo pensa que está defendendo a filha, no fim se vê que não. Ele mata o genro porque o ama, puxa o revólver e mata por amor. Isso era assustador. Hoje não seria totalmente. Embora muita gente ainda se incomode com o ser humano exercendo suas possibilidades afetivas, a realização da sua sexualidade, da sua opção de vida.

Hoje vemos conquistas que ampliam liberdades de gênero, de sexualidade e, ao mesmo tempo, fortes reações a esses avanços. Não só no país. Partidos e lideranças conservadoras têm ganhando força nundo afora. Como vê estas ameaças a liberdades recém-conquistadas?

Iremos sobreviver. Não tenho dúvida. Nós, artistas, temos a face da liberdade absoluta dentro da gente. Então, através da história vemos que sempre que há um movimento desse tipo, contrário a essa existência liberta, ele passa. Ninguém segura o movimento de sobrevivência do ser livre, do ser luminoso, que é quem faz a vida existir de forma quente, sanguínea, fraterna. Não sei se estou respondendo, mas acontece que não sou voltada para o desespero, para a ausência de saída. Não sou boba alegre, pelo contrário. Mas, neste país, já sobrevivemos a crises em que dizíamos ?Amanhã não terá amanhã, haverá suicídio geral?. Sobrevivemos. E estamos sobrevivendo. Há uma crise terrível, mas não nasceu agora. As coisas foram se deturpando, e acho até que, por estarmos num momento tão terrível, o que nos aguarda é uma boa saída. Pode ser uma resposta romântica? Acho que não.

2016 foi um ano de muitas turbulências políticas, sobretudo a partir do Impeachment da ex-presidente Dilma. Como acompanhou os protestos nacionais e internacionais dos artistas e realizadores de cultura, que tanto realizaram ocupações artísticas em prédios públicos como se manifestaram no Festival de Cannes, como foi o caso dos realizadoress do filme ?Aquarius?? Como viu tudo isso?

Concordando. O indivíduo tem direito de se pronunciar onde quer que esteja. Fora isso, o setor cultural só existe pela contestação, já que não nos dão valor. A cultura é uma espécie de fantasia para o político brasileiro, uma perda de tempo. Estou cansada, em 70 anos de vida pública, de ver isso. Seguimos sem saúde, educação, saneamento. Um organismo falido. E a cultura sem ser cuidada. Não há um grande país que não tenha uma grande cultura, e com todo um grande investimento nessa cultura.