Cotidiano

Exibição de ?Nise? arranca lágrimas de internos que participaram do filme

É sempre singular a chance de assistir a um filme na sua locação original. Como ter visto o documentário “Santiago”, de João Moreira Salles, na casa que abriga o Instituto Moreira Salles (IMS), na Gávea, ou como assistir a “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, numa sessão no Parque Lage. A exibição de “Nise, o coração da loucura”, de Roberto Berliner, no Instituto Municipal Nise da Silveira, no hospital psiquiátrico onde o longa foi rodado (e que ironicamente fica num bairro chamado Engenho de Dentro), com os internos que participaram das filmagens, foi, nas palavras da atriz que vive a protagonista, Gloria Pires, “das sessões de cinema mais especiais em que já estive”.

Organizada pela TV Zero e pelo Cinemão, projeto cultural que monta sessões de cinema em territórios populares, a exibição, anteontem, reuniu cerca de 500 pessoas. Além de internos e funcionários do hospital que estiveram envolvidos nas filmagens, foram ver o longa seus parentes e amigos, velhos e crianças; pessoas em situação de rua, portadores de deficiências outras que não as mentais, focadas na trama, e toda a equipe técnica de “Nise”. 

— O filme fala sobre transtorno mental, mas a palavra-chave de tudo isso é inclusão. Sou surda e trouxe meu irmão para me ajudar a entender o filme. Quis vir aqui para agradecer a vocês. É muito importante para nós que o desconhecimento sobre os portadores de deficiência diminua — declarou emocionada Taís Victer, 29 anos, ao final da sessão, quando o diretor, Roberto Berliner, abriu o microfone para que a plateia comentasse a obra.

“Se deu bem, hein, negão!”

No início, muitos pacientes — ou “clientes”, como preferia chamar a própria doutora Nise da Silveira, observação recorrente que a protagonista faz no filme, ao referir-se aos internos — olhavam a tela de soslaio ou sentavam-se de costas à exibição. Um deles, José “Mestre” Alberto, um dos artistas do Museu do Inconsciente, que também funciona no Instituto, passou toda a fita fazendo desenhos no chão.

Mas aos poucos foram se aproximando, servindo-se de pipoca e guaraná distribuídos na sessão gratuita. Vez ou outra, um reagia aos gritos da plateia, vibrando pelos personagens. Como na sequência inicial, em que Nise bate insistentemente num portão de ferro, para que a deixem entrar no hospital (uma metáfora clara sobre a rigidez do sistema que teria de enfrentar): “Abra a porta para ela, não tá vendo que ela quer entrar?!”. Ou na cena em que uma estagiária do hospital e um “cliente” insinuam uma aproximação romântica: “Se deu bem, hein, negão! É o amor!”.

Interno há 15 anos e integrante do Museu de Imagens do Inconsciente há quatro (um dos principais legados de Nise da Silveira no local, o museu abriga o ateliê e o acervo dos pacientes), o artista plástico Edson Luiz Antunes, 53 anos, participou das filmagens e assistiu emocionado ao longa.

— Um dos grandes ensinamentos que tive no ateliê e que levo para a vida é que, para achar a cor certa da tinta, a gente tem que brigar com ela. Perguntar para ela. Não são assim as coisas? — deixou a pergunta no ar.

Ex-interno, o maquiador Dalton Carvalho, 49 anos, contou sua história, em lágrimas:

— Passei dois anos da minha vida aqui dentro, minha mãe também foi internada aqui durante cinco anos. Eu me sinto em casa, e vocês conseguiram transmitir tudo isso. Espero que esse filme sirva também como uma campanha para salvar esse lugar, que está abandonado.

Não é exagero. Se no telão o filme exibia um hospital degradado, mas ainda cercado de verde, a área externa da instituição, onde foi montado o telão, confirmava que ainda há muito a ser feito por ali. A diretora do hospital, Erica Pontes, esclareceu que “a luta de Nise ainda é diária”:

— A obra da Nise é o norte dessa instituição, tanto é que leva seu nome. Mas é uma luta diária ainda honrar seu nome. Ainda temos gente morando há 40 anos aqui, mas aos poucos vamos desconstruindo essa realidade. A cultura serve para levá-los, e levar suas histórias, para fora do instituto. O diferente não tem que estar trancado, escondido. A gente precisa de apoio, que a população acredite que é possível ampliar esse lugar de inclusão.

Comovida, Gloria Pires comentou, ao final:

— É uma das sessões de cinema mais especiais em que estive. Foi muito duro esse trabalho, muito sofrido, exigiu de nós muita responsabilidade, e voltar aqui foi muito esperado.