Cotidiano

Especialistas analisam estudo sobre distribuição desigual de tarefas do lar

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RIO ? De geração em geração, meninas de todo o mundo ainda
levam na bagagem o peso de assumirem a maior parte das tarefas domésticas por um
estereótipo de gênero. E a distribuição desigual em relação aos meninos começa
cedo, como mostra um estudo divulgado ontem pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef): entre os 5 e 9 anos, elas gastam 30% mais tempo que eles, por
dia, em atividades como cozinhar, limpar a casa, cuidar de membros da família e
coletar água e lenha ? disparidade que aumenta para mais de 50% entre 10 e 14
anos. No Brasil, a realidade é bem parecida, especialmente em áreas rurais.

Links desigualdade de gênero

? Infelizmente, aquilo que sustenta uma sociedade
hierárquica, desigual e patriarcal em termos de gênero são os processos
socializadores que orientam a função e o papel que seria de homens e de
mulheres, desde o nascimento, como na escolha de cores e tipo de brinquedos.
Estamos ainda em um processo de fazer a crítica, debater e tentar desconstruir
essas posições tão enraizadas ? diz Marlise Matos,
coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) e do Centro do Interesse Feminista e de
Gênero (CIFG) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

De acordo com o relatório do Unicef, a situação é mais
crítica em nações do Sudeste Asiático, Oriente Médio e Norte da África, sendo
que os países Burkina Faso,
Iêmen e Somália lideram esse ranking. E a baixa escolaridade é um fator
significativo para que este modo de vida se dissemine, sem controle, entre
meninas e mulheres, inclusive no Brasil.

? Em um fórum que faço com mulheres do Vale do
Jequitinhonha (em Minas Gerais), o relato delas é quase um lamento sobre o
quanto essa vida no campo é de ancoragem na casa e no terreno que têm para
plantar, restrita a ponto de não saírem para lugar algum. Elas vivem para essas
atribuições e têm baixa escolaridade, uma situação geralmente passada de mãe
para a filha ? frisa Marlise.

IMPACTOS NO DESEMPENHO ESCOLAR

Professora de economia da USP e especialista em bem-estar social, Ana Lucia Kassouf
liderou um estudo publicado no mês passado sobre o desempenho de crianças do 5º
ao 9º ano de escolas públicas em áreas urbanas. O ponto de partida do artigo,
intitulado ?The impact of child labor on his/her
performance in school? foi a
Avaliação Nacional do Rendimento Escolar, conhecida como Prova Brasil ?
referentes ao 5º ano, em 2007; e 9º ano, em 2011 ?, e suas variáveis quando
cruzadas a dados sobre trabalho infantil, em casa ou não.

A análise mostra que, no 5º ano, 40% das meninas
trabalham em casa (considerando trabalhar como por uma hora ou mais) contra 31%
dos meninos. No 9º ano, a diferença aumenta para 53% das meninas contra 27% dos
meninos. O quadro só muda quando se trata de mercado de trabalho: no 5º ano, 14%
dos meninos trabalham, contra 6% das meninas e no 9º ano, 21,5% dos meninos
trabalham fora de casa, contra 10% das meninas.

? Isso tem um impacto alto no desempenho escolar, além
da influência de outros aspectos, como renda e escolaridade dos pais ? analisa
Ana Lucia.

Considerando as meninas como uma grande população ? de
1,1 bilhão com idade menor que 18 anos, no mundo ? que corre o risco de ficar
para trás no progresso global almejado pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, o estudo feito pelo Unicef indica que, em países com dados
disponíveis por tipo de tarefa, quase dois terços das meninas de 5 a 14 anos
(64%) ajudam cozinhando ou limpando a casa. A segunda tarefa mais comum nesta
idade é fazer compras para o lar (50%), seguida por buscar água ou lenha (46%),
o que ainda as deixa, em alguns países, sob risco de abusos sexuais; lavagem de
roupa (45%); cuidar de outras crianças (43%); e outras tarefas domésticas (31%).
Um destaque do relatório é que o trabalho delas é, ainda assim, menos visível e
geralmente subvalorizado. Por outro lado, a carga do gênero também pesa do lado
masculino, lembra a professora da USP:

? Os meninos ficam vulneráveis a atividades fora de
casa, no mercado, na agricultura, no comércio e, em alguma medida, na construção
civil.

Igualar tarefas para meninos e meninas passa, no
entanto, por um entendimento maior de como se dá o processo de desenvolvimento
do cérebro humano. Esse aspecto é defendido pela neuropsicóloga Adriana Fóz, gestora do projeto Cuca Legal, da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) e diretora clínica integrativa da Unidade Vila
Nova do Hospital Santa Mônica.

? Existe um desenvolvimento que é comum a toda criança,
não importa se ela mora na África, na Índia ou no Brasil. Um bebê matura seu
cérebro de acordo com o estímulo do ambiente. Até os 12 anos, perdem-se alguns
neurônios e recombinam-se outros. Meninas que aprendem a desempenhar tarefas
mais pesadas para sua idade assumem mais responsabilidade e podem perder a
oportunidade de desenvolver certas habilidades e competências importantes
daquela fase. É como se uma janela neurocognitiva, que abre em tempos exatos, se
fechasse para elas ? afirma Adriana.

PARTICIPAÇÃO NA ROTINA

A neuropsicóloga acredita que, entre 5 e 10 anos, faixa inicial do estudo do
Unicef, as crianças devem ser protegidas para que períodos importantes como a
primeira infância (até os 7 anos) e a segunda (dos 7 anos até a adolescência)
sejam preservados:

? A criança precisa aprender que participar de tarefas
como tirar a mesa e deixar a louça limpinha faz parte da rotina da casa. Ela não
deve é deixar de estudar e brincar para fazer tarefas domésticas ? explica.

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Para que Gabriel Izaú, de 13 anos, recebesse de bom grado o título de
lavador oficial das louças da casa no início deste mês, sua mãe, Gracy Izaú, não
precisou se estender em explicações. A ordem veio como resposta ao comentário do
menino de que ?lavar louça é coisa de mulher e que homem não tem obrigação de
fazer serviços domésticos?. Uma foto dele já em ação na pia, postada no Facebook, rendeu comentários a favor e contra a
iniciativa da microempresária, que tomou a decisão com o marido, seu ?parceiro
em todas as tarefas, dentro e fora de casa?, ressalta. O filho caçula, Israel,
de 8 anos, também não fugiu das novas regras: passou a recolher a louça que fica
na mesa depois das refeições.

? Eu não faço ideia de onde o Gabriel tirou isso porque
ele tem bons exemplos em casa. Nem ele sabe explicar, diz que ouviu por aí. O
azar dele foi reproduzir isso para mim. Recebi muitas críticas e xingamentos nas
redes sociais por minha atitude e mostrei aos meus filhos que é justamente isso
que não quero que reproduzam quando forem adultos. Eles já veem as tarefas com
naturalidade e agora estão responsáveis por limpar a areia do gato, com o qual
brincam sempre. Daqui a alguns anos, vamos começar a cozinhar juntos ? diz Gracy.