Cotidiano

Especial Ulysses: ?Convívio de contrários?, por Fernando Collor

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Durante a segunda metade do século passado, Ulysses Guimarães foi o maior expoente político brasileiro dentre aqueles que não chegaram a exercer a Presidência da República. Preparo e estatura não lhe faltavam para o cargo.

Mas o destino lhe reservou, em mais de quatro décadas de atividade pública, trilhas e missões tão relevantes que hoje, no centenário de seu nascimento, o nome e o pensamento dele são sempre lembrados no debate político. Será eterna referência para soluções de crises. Hoje, ele faz falta.

Em alguns momentos de nossa caminhada política estivemos em campos opostos. Um deles foi na corrida presidencial de 1989. Ele, candidato pelo PMDB; eu, pelo PRN. Outro, foi durante a demanda do impeachment. Ulysses faleceu em outubro de 1992, antes da culminação do processo pela minha renúncia.

A despeito dos contratempos naturais da política, do apoio partidário prometido antes da CPI e do posterior desarrimo, reconheço a autoridade e o talhe do Dr. Ulysses. Ambos sabíamos distinguir a circunstância de adversários da condição de desavindos.

Onze mandatos consecutivos de deputado federal. Ulysses era homem do Parlamento. O diálogo era o seu mister e a política a sua lide. Não foram em vão. Ele nos legou a luta racional contra o regime de exceção; nos garantiu a abertura política e a consolidação da democracia; nos herdou as eleições diretas; nos transmitiu a Constituição Cidadã, para ele, ?o estatuto do homem e sua marca de fábrica.?

Como homem complexo, controverso, Dr. Ulysses tramitou da política corriqueira à extraordinária; da ação realista à visionária; da planície ao planalto. Mas alertou: ?Política não é o ofício da bagatela, a pragmática da ninharia.? Estadista, não fugiu dos grandes temas.

Conceituou a liberdade de expressão como ?apanágio da condição humana?, aquela que ?socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas ou banidas.? Assim, dizia: ?A liberdade é o roteiro da civilização.?

Pensou na nação em sua essência. Preocupou-se com o Estado pelo princípio federativo e o equilíbrio regional. Ensinou que ?a Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das províncias. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil.?

E alertou, com a experiência de quem testemunhou os grandes traumas políticos do Brasil: ?O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto.? Ele sabia que ?a sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado?.

Mas seu maior compromisso foi com a democracia. Por ela, lutou, debateu, divergiu e articulou. E por ela também cedeu, recuou, convergiu e esperou. Sabia que ?a grande força da democracia é confessar-se falível de imperfeição e impureza, o que não acontece com os sistemas totalitários, que se autopromovem em perfeitos e oniscientes para que sejam irresponsáveis e onipotentes?.

Por isso, ninguém melhor que o Dr. Ulysses para incorporar sua própria definição de democracia: o convívio de contrários.