Cotidiano

Em carta aberta, professoras da UFRJ acusam Flip de promover ?Arraiá da Branquidade?

PARATY — No ano em que a homenageada da Flip é a escritora Ana Cristina César e o evento se debruça sobre a presença feminina na literatura — com 17 mulheres entre os 39 participantes da Tenda dos Autores — a ausência de autoras negras na programação causou revolta entre mulheres que integram o Grupo de Estudo e Pesquisa Intelectual Negra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em carta aberta ao evento, elas criticam a organização do evento, chamado de “Arraiá da Branquidade”.

“Em um país de maioria negra e de mulheres, é um absurdo que o principal evento literário do país ignore solenemente a produção literária de mulheres negras como Carmen Faustino, Cidinha da Silva, Elizandra Souza, Jarid Arraes, Jennifer Nascimento, Livia Natalia e muitas outras”, diz o documento. “Que naturalizando o racismo, a curadoria considere que fez sua parte convidando autoras da raça Negra que infelizmente não puderam aceitar o convite. A não procura de planos a, b, c diante destas supostas recusas relaciona-se à falta de compromisso político da FLIP com múltiplas vozes literárias nacionais e internacionais (…) Este silenciamento do nosso existir em uma feira que se reivindica cosmopolita, mas está mais para Arraiá da Branquidade, se insere no passado-presente da escravidão”.

A carta foi publicada no site www.conversadehistoriadoras.com, e faz parte do evento “Vista nossa palavra, Flip 2016”, que integra uma série de ações organizadas para discutir a falta de visibilidade de autoras negras de uma forma geral. Além da carta, o grupo fará oficinas de escrita em escolas públicas e um dia inteiro de programação literária no sábado, em Oswaldo Cruz, no Rio, que pretende funcionar como um contraponto à programação “branca” da Flip.

— Nosso grupo de estudos existe há três anos, é formado por estudantes, pesquisadoras da UFRJ e mulheres não ligadas à universidade. No último dia 16 de maio fizemos um seminário sobre Intelectuais Negras, que acabou motivando esta reflexão. Decidimos escrever um “textão”, que é esta carta aberta à Flip, criar uma hashtag para a mobilização, que também conta com vídeos de apoiadores, como o escritor Alberto Mussa. Mas nossa ação vai muito além disso, a carta não se encerra nela — explica a idealizadora da campanha, a historiadora e professora Giovana Xavier. A programação completa do evento de sábado está na página do Facebook “Vista nossa palavra Flip2016”.

CURADOR RESPONDE

Paulo Werneck, o curador da Flip, comentou a ausência de autores negros em geral e admitiu que essa acabou sendo uma lacuna da atual edição do evento. As primeiras críticas já haviam surgido quando a programação foi anunciada, em meados de maio.

— Quando se fala “não foi convidada”, na verdade, a gente convidou. Mas nenhum dos autores negros que convidamos pôde aceitar. Essa crítica é pertinente. É verdade. Falta mesmo. Fica como uma falha, uma lacuna. A Flip tem uma história de diversidade, mas a construção das coisas da cultura não são simples: nós fizemos oito convites a autores negros.

Werneck afirma que entre esses convidados estavam grandes nomes da cultura e da ciência e cita os nomes de alguns deles, como o astrônomo americano Neil DeGrasse Tyson e o jornalista e ensaísta americano Ta-Nehisi Coates. O curador afirma ainda que convidou pelo segundo ano o arquiteto Francis Diebedu Keré, de Burkina Faso, entre outros.

— Chamei a a Elza Soares, que está com agenda apertada de shows; o Mano Brown, numa conversa que levou quatro meses e infelizmente a gente bateu na trave. Convidamos a Fatou Diome, escritora franco-senegalesa, que viralizou outro dia na internet (em vídeo sobre a questão dos refugiados), o Paulinho da Viola também não pôde.

Durante essa escolha dos nomes para a programação oficial, ele comenta que houve um momento que “entregou os pontos”.

— Eu entendo essa reivindicação, recebo a crítica, não vou tentar rebater. Vou dar ouvidos a elas, mas não se trata de não ter sido convidado. Foi convidado. E a gente em algum momento entregou os pontos. Foi quando a Elza não podia aceitar, a gente decidiu: precisamos fechar. Em 2014, a Flip abriu uma temporada de sugestões para a programação, justamente para receber informações e ideias que não estão no meu radar, que não me ocorrem. Acho curioso que esta reivindicação não tenha aparecido naquele momento. Mas eu vou ficar sensível a isso, acho que é assim que funciona o debate intelectual.

Ao receber a carta, a organização da Flip enviou uma nota oficial: “Recebemos a carta aberta à Flip com respeito e atenção. A crítica é pertinente. A certo ponto, após uma sucessiva recusa dos artistas, escritores e cientistas negros que convidamos, fechamos a programação com essa lacuna, que também se verifica no mercado editorial, na imprensa, nas instituições culturais brasileiras. Neste ano, num gesto inédito, reservamos um espaço na Programação Principal para Elza Soares até o limite do nosso prazo, mantendo a mesa reservada até mesmo após a divulgação da programação. A Flip 2016 inclui, no Espaço Itaú Cultural de Literatura, que integra a programação oficial da festa, debates sobre autores que discutem a questão da representação negra, como Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Sérgio Vaz e Roberta Estrela D'Alva.

A Flip tem uma história na diversidade na literatura, tendo convidados grandes nomes da cultura negra brasileira e internacional em seus 15 anos de história, tais como Chimamanda Ngozi Adichie, Toni Morrison, Ngugi wa Thiong'o, Dany Laferrière, Gilberto Gil, Ondjaki, Paulo Lins, entre outros, e por isso se compromete a manter os olhos abertos à questão da representatividade negra em suas próximas edições. No ano passado, recebemos Deocleciano Moura Faião, poeta morador da Rocinha. Mantemo-nos abertos ao debate e à interlocução.”

— Não é uma questão de convidar ou não mulheres negras, este argumento reflete o “racismo à brasileira”. É uma questão de compromisso político e de coerência com o evento. Falar de racismo, pautar o debate sobre a questão racial não é uma opção — avalia Giovana Xavier.