Cotidiano

Documentos revelam que briga de casal quase comprometeu o Dia D

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RIO ? A atuação do espanhol Juan Pujol García, conhecido pelo codinome Agente Garbo, foi essencial para a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Atuando como agente duplo, ele foi um dos responsáveis por plantar informações falsas para a inteligência alemã, que fizeram com que os nazistas esperassem o desembarque do Dia D em Pas de Calais, em vez da Normandia, onde realmente aconteceu. Agora, sete décadas após o fim dos combates, documentos liberados pelo serviço secreto britânico mostram que a identidade do espião quase foi revelada por sua esposa, que estava doente por ficar trancada em casa e não se adaptou à vida na capital inglesa. Para salvar as operações, ela foi presenteada com meias de seda e um falso pedido de prisão foi expedido para García.

A história, digna de filmes de espionagem, conta que García, filho de um industrial de Barcelona, se apresentou por iniciativa própria para servir como espião para os britânicos. No início, ele foi rejeitado. Para convencer os britânicos e americanos, o espanhol criou a falsa identidade de um funcionário do governo espanhol pró-nazismo e foi aceito como agente alemão. Ele foi instruído a se mudar para a Inglaterra, mas, em vez disso, foi para Lisboa e começou a enviar informações falsas para os nazistas. Ele foi aceito pelos aliados após um episódio em que os alemães dispenderam recursos consideráveis caçando um comboio militar fictício.

Em 1942, García se mudou para Londres com a esposa, Araceli Gonzalez de Pujol, e recebeu o codinome Garbo. Os novos documentos revelam que a jovem, então com 23 anos, nunca havia deixado a Península Ibérica antes de se mudar para a capital inglesa. Sem falar inglês, ela passava a maior parte do tempo trancada em casa, com os dois filhos do casal, enquanto o marido passava longos períodos viajando. Até a alimentação, com ?muito macarrão, batatas e pouco peixe?, era um problema. O desespero foi tão grande que ela ameaçou procurar a embaixada da Espanha em Londres e revelar a identidade do marido para o país fascista, então comandado pelo general Franco.

MISSÃO PARA COMPRA DE MEIAS

Para tentar conter os ânimos da senhora Garbo, em fevereiro de 1943 o MI5 (Serviço de Segurança do Reino Unido) destacou o agente CP Harvey para viajar até Lisboa, em Portugal, para uma missão secreta: comprar 12 pares de meias de seda para Araceli. Na época, a seda estava em falta no Reino Unido, pois quase todo o estoque era direcionado para a produção de paraquedas. As meias haviam sido prometidas para Araceli e um agente do MI6 (Serviço Secreto de Inteligência) já havia sido enviado para Lisboa, mas falhou na missão por não saber o tamanho.

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Tommy Harris, superior de Garbo no MI5, alertou Harvey que ?teria um efeito muito negativo no moral dela? se os britânicos não conseguissem honrar a promessa por novas meias de seda. Dessa forma, a missão era ?uma pequena questão com alguma importância?. Felizmente, Harvey conseguiu comprar as meias e retornar a Londres no dia 4 de março. A questão era tão importante que foi assunto de comunicação secreta entre o MI5 e o MI6.

?A senhora Garbo está, como você pode imaginar, muito satisfeita?, escreveu Harris em comunicação ao major Frank Foley, que ficou conhecido como o ?Schindler britânico? pela sua ajuda na fuga de judeus de Berlim antes da guerra.

Os documentos agora revelados mostram que o serviço de inteligência britânico fez todos os esforços para manter o bem estar da esposa do principal agente duplo da Segunda Guerra. Além do episódio das meias, foram feitas melhorias na alimentação e foi cogitada a recomendação do Agente Garbo, de levar para Londres a mãe e a irmã mais velha de Araceli.

?Ele (Agente Garbo) diz que a mãe dela poderia cuidar das crianças (…). A irmã, que é uma mulher séria, 17 anos mais velha que sua esposa, poderia cuidar da casa?, escreveu Harris, em um dos documentos. ?A senhora Garbo teria companhia e poderia conversar em espanhol durante todo o dia?.

Apesar dos esforços, na noite do dia 21 de junho de 1943 o serviço secreto foi alertado sobre uma briga do casal. O documento ?Relatório de uma noite histérica com a senhora Garbo? descreve que ela telefonou para Harris para dizer que não aguentava mais viver na Inglaterra e iria procurar a embaixada espanhola em Londres.

?Eles podem me matar amanhã, mas eu não quero viver nem mais um dia na Inglaterra?, disse Araceli, desesperada com a vida que levava na capital inglesa. ?Eu não quero mais viver um dia com o meu marido. Vocês podem ficar com ele?.

PRISÃO FALSA

Para resolver a crise, o Agente Garbo propôs um ?plano dramático que, se tivesse falhado, teria arruinado sua vida matrimonial?. A sugestão era que a esposa fosse informada que ele teria sido removido das operações e, por ter respondido com violência, ele teria sido preso. O agente chegou a ser vestido como presidiário e foi levado ao Campo 020, centro de interrogatórios para agentes nazistas capturados.

Araceli foi comunicada da prisão e foi levada vendada para visitar o marido. Após o encontro, ela foi convencida sobre a importância de apoiar o trabalho de espionagem exercido pelo marido. O major Edward Cussen, conselheiro legal do MI5, disse a ela ter decidido libertar seu marido para que ele continuasse com a missão.

?Ele lembrou a ela que não tinha tempo a perder com pessoas cansativas e que se o nome dela fosse mencionado para ele novamente, ele simplesmente ordenaria que ela fosse presa?, observou Harris.

O Agente Garbo continuou sua missão, que foi tão bem sucedida que dois meses após o desembarque na Normandia, as forças nazistas ainda mantinham duas divisões de blindados e 19 de infantaria em Pas de Calais, esperando por uma invasão que nunca aconteceu. A confiança dos alemães em Garbo era tamanha que ele recebeu a Cruz de Ferro, mais alta condecoração militar do Terceiro Reich, concedida apenas após aprovação direta de Adolf Hitler. Do outro lado, o agente duplo recebeu a Ordem do Império Britânico, tornando-se uma das poucas, senão a única pessoa a receber as mais altas condecorações dos nazistas e dos britânicos.

Dessa forma, Juan Pujol García pôde ajudar a salvar a Europa do fascismo, mas não seu casamento. Temendo a perseguição de nazistas após a guerra, ele viajou para Angola e forjou a própria morte por malária, em 1949, e se separou de Araceli. Depois, se mudou para a Venezuela, onde viveu em relativo anonimato tocando uma livraria e uma loja de presentes. Lá, se casou novamente e teve três filhos. Morreu em Caracas, em 1988, aos 76 anos.