O pernambucano Wagner Domingos não sabia nem falar inglês, muito menos
esloveno, quando juntou as próprias economias, mais uma modesta ajuda de custo
da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), e rumou para o leste europeu no
início de 2009. O destino era uma gélida cidadezinha de seis mil habitantes,
chamada Bre?ice ? pronuncia-se ?Brégice?, como o próprio Domingos hoje faz
questão de salientar ?, e a razão da viagem inusitada tinha nome e sobrenome:
Vladimir Kevo. Treinador do então campeão olímpico de lançamento de martelo,
Primoz Kozmus, Kevo aceitara o Montanha, como Domingos é conhecido, para um
breve estágio de treinamento.
Olimpíadas – Preparativos em 15.06
O brasileiro, à época, sonhava em lançar a mais de 70 metros de distância o
conjunto formado pela bola de ferro presa a um fio de metal, que pesa cerca
de 8kg. Sete anos ? e muita quilometragem na rota Brasil-Eslovênia ? depois,
Montanha conseguiu atirar o martelo a 78,63 em Celje, no último dia 19, marca
que o colocou como quarto melhor do mundo nesta temporada e, de quebra, ainda
valeu índice para participar da Olimpíada do Rio, onde chegará com esperança de
pelo menos ir à final.
Antes, Montanha tem o Troféu Brasil de Atletismo, em São
Bernardo do Campo, onde abre a competição nesta quinta-feira com as eliminatórias do martelo, pela manhã,
em busca de vaga na final, marcada para as 15h. Domingos briga pelo quinto título consecutivo no Troféu Brasil. Depois, retorna à Eslovênia para mais um período de treinamentos.
? Como a verba aumentou, hoje eu consigo ficar em hostel quando vou à
Eslovênia. Nas primeiras vezes, tinha que ser na casa do Kevo. Ele é uma pessoa
muito carismática, me adotou como parte da família. Quando consegui bater o
índice olímpico, ele me abraçou e disse: ?muito obrigado, filhinho?. Em
português mesmo, porque ele aprendeu a falar um pouquinho de português ? narrou
Montanha, por telefone, ao GLOBO.
CÂNCER NA BEXIGA EM 2011
Montanha percebeu que não teria moleza assim que colocou os pés no centro de
treinamento em Bre?ice. A primeira palavra que aprendeu em esloveno foi
?pickumaterino?, xingamento de tradução impublicável que Kevo gritava para
Kozmus, o campeão olímpico, que não estava em dia muito inspirado.
O trabalho
duro permitiu que Montanha aperfeiçoasse tanto a parte física quanto a técnica
de lançamento, uma sequência complicada que envolve sincronia de ombros e pés,
além de três a quatro giros, os dois últimos em alta velocidade. No meio do caminho, o maior desafio veio fora das pistas: meses antes do Pan
de Guadalajara, em 2011, Montanha descobriu um câncer na bexiga. Fez cirurgia e
recuperou-se a tempo de conseguir a quarta colocação no México.
Neste ano, reta
final de preparação para a Rio-2016, Montanha chegou à Eslovênia em janeiro,
lançando entre 71 e 72 metros. Até junho, reduziu o peso de 115kg para 108 kg e
melhorou o lançamento em mais de seis metros. São números vistos como enormes
pelo sujeito de 1,87m que, hoje com 33 anos, começou no martelo há 18, por
acaso, quando um antigo treinador lhe pediu que preenchesse uma vaga nos Jogos
da Juventude de 1998, no Paraná.
? O martelo é muito diferente. Por incrível que pareça, as três provas mais
discriminadas eram salto com vara, lançamento de martelo e marcha atlética. A
logística dessas provas é complicada, o pessoal reclamava de ter que incluir nas
competições. Hoje são as provas em que o Brasil chega com mais expectativa de
medalha nessa Olimpíada. Os competidores evoluíram, mas isso demora um tempo e
as pessoas muitas vezes não têm paciência de esperar.
Paciência, diga-se de passagem, foi o que Montanha precisou ter de sobra para
aguentar os longos períodos sem a família para aquecê-lo no rigoroso frio
esloveno.
? Foi difícil porque lá, pela primeira vez, peguei temperaturas abaixo de
zero. Em Recife o termômetro bate 30 graus, quando cheguei na Eslovênia fazia 10
negativos. Tinha dias que eu achava impossível sair para treinar, mas o pessoal
me falava: ?calma rapaz, se não estiver ventando não tem problema? ? lembra.
‘UM PASSO DE CADA VEZ’
Embora o desempenho recente do Brasil no atletismo deixe a desejar no geral,
especialmente nas tradicionais provas de velocidade, Montanha não concorda com a
maré de pessimismo. Enxerga o esporte em evolução, graças ao maior investimento
em estágios de treinamento no exterior, como o dele próprio na Eslovênia, e às
bolsas destinadas a atletas neste ciclo olímpico.
? O que falta é investir em infraestrutura para os atletas. Eu tenho meu
lugar para treinar, no meu clube (BM&F Bovespa, em São Caetano do Sul), mas para
qualquer outro que chega de Recife não é tão fácil assim. Se você olhar, a
maioria dos atletas de alto nível são novos, têm 20 a 25 anos. Vejo o atletismo
brasileiro em evolução, mas precisa de um pouco mais de tempo. Infelizmente esse
alto nível não chega nesta Olimpíada, mas em 2020 teremos muitos atletas em
nível melhor do que hoje ? aposta.
O próprio Montanha, embora tenha uma das melhores marcas do ano olímpico,
acredita que pode render ainda mais nos Jogos de Tóquio. Por enquanto, paciente
como sempre, ele pensa em dar um passo de cada vez. Metade do caminho ele
considera já cumprida com a classificação para a Rio-2016, trajetória que inclui
o recorde sul-americano de martelo, a amizade de um dos treinadores mais
respeitados do mundo, viagens pelo mundo que o fizeram aprender a falar inglês e
algumas palavras, além do palavrão original, em esloveno.
? Se eu conseguir vaga na final olímpica, vou ficar 100% satisfeito. Vou em
busca do que estiver ao alcance das mãos, um passo de cada vez. Não adianta
querer pular, senão acaba torcendo o pé. Se Deus me abençoar com essa medalha,
terei alcançado 150% do que eu imaginava.
