Cotidiano

Diretor do documentário 'Eu não sou seu negro', Raoul Peck comenta racismo de ontem e hoje

64872915_RS- documentário Eu não sou seu negro.jpgSÃO PAULO – Indicado ao Oscar de melhor documentário em longa-metragem, ?Eu não sou seu negro?, que estreia nesta quinta nos cinemas (e foi bem recebido no Festival de Berlim), resgata a figura do escritor e ativista americano James Baldwin (1924-1987). Amigo de personalidades como Malcolm X e Martin Luther King Jr., Baldwin era personagem proeminente na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos dos anos 1960, tornando-se presença recorrente em movimentos de rua, universidades e até em programas de TV. Links Eu não sou seu negro

O haitiano Raoul Peck, diretor do filme, obteve acesso irrestrito ao espólio do escritor. Peck usou como fio condutor do documentário, narrado por Samuel L. Jackson, os rascunhos de um livro nunca concluído pelo autor, ?Remember this house?, que contaria a história do movimento pelos direitos civis e contra o racismo por meio das trajetórias interrompidas de Malcolm X, Luther King e Medgar Evers ? este último um alto quadro da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (em inglês National Association for the Advancement of Colored People). Os três foram assassinados.

Na conversa a seguir, Peck, que está em Berlim acompanhando o festival de cinema, fala sobre a importância de Baldwin, a abordagem do escritor para a luta contra o racismo, menciona o Brasil e diz o que precisa mudar na indústria de cinema americana para que exista mais diversidade. Veja o trailer de ‘Eu não sou seu negro’

Gostaria de colocar ao senhor a mesma questão que Dick Cavett, apresentador de um talk show de sucesso na TV americana, faz a James Baldwin em uma entrevista no início dos anos 1960 e que abre o filme: não houve nenhum progresso nas questões raciais, não há esperança para que se dê um passo definitivo?

Os Estados Unidos foram construído em cima de dois genocídios, o dos índios e o da escravidão. Por falar nisso, o mesmo problema acontece no BrasilBaldwin diz para Dick Cavett que somos os arquitetos do futuro. Cabe a nós ? incluindo os brancos, porque não somos nós, os negros, os únicos a carregar o fardo de ter que responder a isso ? mudar a forma como olhamos para a questão racial. Ele diz literalmente: ?Eu não inventei a escravidão, não inventei (as leis de segregação racial) Jim Crow, não inventei o racismo. Como você quer que eu lute e mude o mundo para você??. Essas são palavras importantes e profundas. A questão de Cavett é inocente. Então, a situação está melhor e você não tem nada a ver com isso? É o que chamamos de ?privilégio branco?, ou seja, você não pode se dar ao luxo de não ver o que está acontecendo do outro lado, porque você está em um lugar privilegiado. Não existem dois tipos de História, ela é a mesma para todos. Esse país, os Estados Unidos, foi construído em cima de dois genocídios, o dos índios e o da escravidão. Por falar nisso, o mesmo problema acontece no Brasil.

Mas no Brasil, ao menos em teoria, existe uma miscigenação maior.

Essa é a grande ilusão, a grande historinha. Eu estive no Brasil, estive em toda a América Latina, estive na Europa. É muito mais do que isso. E, por falar nisso, racismo é apenas um aspecto da questão. Baldwin, assim como Martin Luther King e Malcolm X, nos seus últimos anos de vida, entenderam que não havia apenas o problema racial, há também o problema das classes sociais. Acontece que não são apenas os negros ou miscigenados que estão nessa situação. É um problema de poder. O branco é uma metáfora de poder. Esse é o principal problema. Não paro no aspecto racista do problema, porque também é uma forma de não enxergar uma realidade mais profunda. Todos os dias eu sou uma pessoa negra. Não acordo pensando que sou uma pessoa negra. Penso em mim como um ser humano, um cineasta, uma pessoa que tem muita capacidade e é assim que conquisto o mundo. O problema é outro. E é sobre isso que Baldwin escreveu há 40, 50 anos, e eu concordo com ele. ?Tenho mais coisa para fazer do que pensar nos seus problemas de racismo. É seu problema, lide com isso e, quando terminar, voltaremos a conversar?. Essa é a minha atitude.

Baldwin não ficou tão conhecido quanto Martin LutherKing Jr. ou Malcolm X, que deixaram um legado. Por que isso?

64856630_Haitian director Raoul Peck addresses the press conference for the film Le jeune Karl Marx.jpgComo você pode ver no filme, ele era uma pessoa muito famosa. Nem todo mundo tem 40 minutos de entrevista no ?Dick Cavett Show?, que era um dos grandes talkshows vespertinos da TV americana, em uma época na qual havia apenas três redes ? ABC, NBC e CBS. E Baldwin, um homem negro, ter esse tipo de acesso era raro. Ele tinha vários amigos, não só os negros. Além de Sidney Poitier e Harry Belafonte, ele tinha uma grande amizade com Marlon Brando. Ele era uma celebridade naquela época. Acontece que as principais lideranças do movimento foram assassinadas. Não podemos esquecer disso. Não só os irmãos (John e Bob) Kennedy, mas também Martin Luther King, Malcolm X. Ninguém mais estava liderando o movimento. Pouco a pouco, criaram um monumento para Martin Luther King ? por acaso, não há nenhum para Malcolm X. Isso esconde a realidade. Não podemos esquecer que Luther King, nos dois últimos anos de vida, atacou o governo por causa da Guerra do Vietnã. Ele começou a deixar a questão racial de lado e a questionar a questão de classe. A marcha sobre Washington que estavam planejando era contra a pobreza. Por isso ele ficou perigoso para o sistema. Por isso, o sistema usa apenas a imagem dele como pregador negro da não violência. Baldwin também foi deixado de lado. E não se esqueça que ele também era homossexual e havia uma certa homofobia até na liderança do movimento negro e na burguesia negra.

Uma das coisas mais interessantes que Baldwin fala ao longo do filme é que não fazia parte de nenhuma organização ou tendência.

Ele era um livre pensador. Era também um apoiador desses movimentos, mas crítico com relação a alguns comportamentos e atitudes deles. Não se encaixava em nenhuma instituição, também porque, com a instituição, vem todo o tipo de problema. Por exemplo, ele foi um jovem pregador na igreja, quando tinha 14 anos. Então, ele conhecia a igreja por dentro ? saiu quando tinha 17 anos. Porque via contradição entre sua vida, os seus sentimentos, sua inteligência e o que essas instituições defendiam. Ele queria ser uma testemunha, estava sempre perto de tudo o que estava acontecendo. Ele foi para o Sul, encontrava com pessoas de todos os tipos, trabalhadores, empresários, intelectuais. Tudo isso para poder escrever sobre elas.

O que o senhor pensa a respeito dessa edição do Oscar, na qual há mais atores e diretores negros concorrendo?

Isso é mais uma daquelas coisas que é evidenciada e não tem tanta importância assim. A Academia fez apenas parte de seu trabalho ao mudar algumas de suas regras. Então, temos mais minorias, mais estrangeiros. Tenho muitos amigos latino-americanos que agora estão na Academia. Eu sei que estão mais sensíveis a filmes como o meu. O problema é que se não se fazem filmes como o meu não há como escolhê-los. Então, o grande problema ainda está no lado da produção. Cada vez que vou a uma reunião, tem uns sete ou oito homens brancos ao meu redor. Há um executivo negro que trabalha na Disney e uma mulher negra que também trabalha em um grande estúdio. Mas é muito pouco. O problema está em você, como um homem negro ou uma mulher, ter que explicar por que quer fazer seu filme. O problema está na estrutura de poder. A Academia está na superfície, ela vê no universo de filmes que foram lançados quais são considerados os melhores. Mas para que isso aconteça é preciso que esses filmes sejam feitos. Não houve nenhuma grande mudança estrutural na forma como Hollywood está fazendo seus filmes.

O que acha que vai acontecer nos Estados Unidos com Donald Trump como presidente?

Sempre que me perguntam isso, eu respondo da seguinte maneira: não sou nenhum profeta, mas o desfecho vai depender do que fizermos. Vamos resistir? Vamos nos organizar? Vamos dar a ele a resposta apropriada? O resultado vai depender disso. Mas o resultado não vai acontecer se todo mundo sentar e ficar vendo TV e seguir o Twitter do presidente Trump. A única resposta que podemos dar é colocar as coisas em discussão e fazer algo. Por falar nisso, Trump não é nada novo. Ele é o típico líder populista que tem prosperado na América Latina e na Europa. Pessoas como (o empresário das comunicações italiano Silvio) Berlusconi, como o (presidente francês Nicolas) Sarkozy… A diferença é que essas pessoas estão sendo eleitas democraticamente. Que tipo de democracia é esta? É uma democracia de consumidores. Como diz Baldwin: ?Vocês precisam mudar a sua realidade, porque ela não vai mudar sem que você assuma a responsabilidade?. A resposta que eu dou é essa: ?O que você vai fazer hoje para mudar sua realidade amanhã??.