Cotidiano

Desconstruindo Mandela

RIO – Em seu primeiro discurso como presidente da África do Sul, Nelson Mandela já lançava as cartas para a construção de uma ?nação arco-íris?, uma metáfora cunhada pelo arcebispo Desmond Tutu para descrever um país multicultural onde diferentes etnias poderiam conviver em harmonia, depois de décadas de segregação racial. Passados três anos da morte de Mandela, ressoam novas vozes críticas ao ex-líder sul-africano e cobranças por medidas mais contundentes para acabar com a marginalização da população negra. Nos últimos meses, o país viveu os maiores protestos desde o fim do apartheid, em 1994. Universidades foram tomadas por milhares de estudantes a favor da educação gratuita e da descolonização do ensino, reacendendo o debate racial. De forma mais ampla, os manifestantes cobram as oportunidades prometidas com a queda do regime dominado pela minoria branca. E colocam em xeque o legado de Mandela, exibindo um retrato ainda em preto e branco do país.

Especialistas acreditam que há uma mudança geracional na forma como os sul-africanos enxergam Mandela. Uma das jovens intelectuais sul-africanas mais influentes, a escritora e feminista Malaika wa Azania, de 25 anos, observa que para a geração mais velha Mandela significa um símbolo de liberdade. Para os jovens, entretanto, representa um arquiteto do mito da nação arco-íris que contrasta com o racismo, ?uma realidade ainda viva na África do Sul?.

? Aqueles como Mandela que afirmaram que temos uma nação arco-íris mentiram, porque temos dois mundos: um da minoria branca privilegiada e outro da maioria negra. O racismo está enraizado em nosso passado colonial e de apartheid e se manifesta no sistema de educação; no mercado de trabalho segmentado; em brancos vivendo em bairros prósperos e negros em guetos; e nas desigualdades econômicas ? afirmou Malaika. ? O governo não buscou mudanças econômicas fundamentais, o que teria ajudado a desmantelar estruturas que deram origem a um novo tipo de apartheid. E por isso, porque somos uma geração à qual foi prometida democracia e liberdade, mas em vez disso nos encontramos em um estado de luta, é difícil reverenciar Mandela.

Para a socióloga Babalwa Magoqwana, professora da Nelson Mandela Metropolitan University, os sul-africanos foram da esperança à descrença.

? A África do Sul passou por diferentes fases, do apartheid à reconciliação, e a esperança estava no centro. Mas a nação arco-íris ainda se assemelha ao Estado do apartheid. Isso significa que a geração mais jovem vê a maioria negra ainda pobre, em barracos, desempregada e alvo de violência. Isso caminha ao lado do crescimento do racismo exposto nas mídias sociais.

E foi a geração mais jovem que voltou às ruas. Sob o lema #FeesMustFall (as taxas devem acabar), as violentas manifestações contra o alto custo do ensino forçaram o fechamento de algumas das melhores universidades do país, além de causarem prejuízos de cerca de US$ 44 milhões por danos à propriedade. Pressionado, o presidente sul-africano, Jacob Zuma, alertou que os protestos ameaçavam sabotar todo o sistema de ensino superior. Estudantes e policiais entraram em choque, e dezenas de pessoas foram detidas em outubro.

Malaika, que é embaixadora da Carta Africana da Juventude, considera que o movimento marca uma virada na História da África do Sul pós-apartheid.

? Os protestos #FeesMustFall são liderados por estudantes, mas uniram o país inteiro. Isso é importante porque sinaliza o renascimento do poder de massa, assim como na era do apartheid. E o que isso significa é que as pessoas estão começando a recuperar seu espaço na política nacional ? avaliou Malaika. ? Agora as universidades estão em recesso. Assim que reabrirem, as manifestações continuarão.

Os recentes protestos jogaram luz sobre as desigualdades que persistem no país mais industrializado da África, mais de duas décadas após o fim do regime racial. Para Babalwa, a crise na educação está diretamente relacionada ao sistema segregacionista.

? Os estudantes estão nos trazendo um novo enfoque nítido sobre os problemas sociais que ainda são reflexo da nossa História racializada. Mais estudantes negros estão entrando em universidades do que nunca, mas muitos ainda não têm dinheiro para concluir o curso ? disse Babalwa. ? A nação arco-íris não conseguiu nos ajudar a articular as dificuldades atuais que o país enfrenta.

A revolta dos estudantes eclodiu no ano passado e perdeu força quando o governo de Zuma decidiu congelar o aumento das mensalidades e criar uma comissão para avaliar o sistema educacional. A agitação, no entanto, se renovou depois de a comissão aprovar, em 19 de setembro, o aumento das taxas, embora com um limite de 8% a partir de 2017. Críticos sustentam que o incremento prejudicaria ainda mais os alunos negros, já sub-representados.

Antes disso, um movimento para ?descolonizar o ensino superior? ganhou força no meio acadêmico. Em março de 2015, o estudante Chumani Maxwele esvaziou um balde de excremento sobre a estátua do imperialista britânico Cecil John Rhodes no campus da Universidade de Cape Town. Atos de protesto se multiplicaram e ampliaram a bandeira com um propósito ainda maior: corrigir as heranças do apartheid na educação. Entre as demandas dos estudantes estão, além de ensino gratuito, mudança no currículo e quadro mais diversificado de acadêmicos.

? O atual sistema educacional é muito colonial e enraizado na pedagogia normativa branca. O que os estudantes querem é uma educação que humanize os povos africanos. Deveríamos estudar mais intelectuais africanos, latino-americanos, indianos, chineses, em oposição a esse domínio americano e europeu ? explicou Malaika.

A professora Babalwa relata que muitos estudantes se sentem estrangeiros em sua própria universidade:

? Um graduado na área de Humanas pode ir até o mestrado sem contato com um pensador negro crítico. A maioria dos nossos alunos se sente como estrangeiro. Isso não é causado somente pela má representação de acadêmicos negros, mas também pela relutância em mudar as culturas institucionais universitárias que reproduzem a supremacia branca.