BERLIM ? Daniela Thomas começou muito cedo no cinema, mas sua carreira como diretora sempre foi associada a outros realizadores. Com Walter Salles, codirigidiu ?Terra estrangeira? (1996), ?O primeiro dia? (1998), e ?Linha de passe? (2008). Com o dramaturgo e diretor de teatro Felipe Hirsch concebeu e realizou ?Insolação? (2010). Agora, com o drama histórico ?Vazante?, que fez sua estreia mundial na mostra Panorama do Festival de Berlim nesta sexta-feira (10), a diretora se aventura, finalmente, na direção solo.
? Decidi fazer cinema aos 19 anos. Acho que sempre dirigi com outros diretores por uma questão psíquica qualquer que me impedia de me colocar à frente de um projeto ? confessa a realizadora de 57 anos, que também é dramaturga e cenógrafa. ? Fazer cinema é capitanear uma quantidade enorme de pessoas e questões de diversas ordens, e isso me afligia muito. Eu me sentia mais confortável dividindo esse lugar com outros. Não era uma insegurança, mas uma fobia de lidar com todas essas coisas ao mesmo tempo, sem descanso. Protelei isso o quanto pude e me arrependo porque gostaria de fazer pelo menos 100 filmes antes de morrer.
Quem a ajudou a superar o que Daniela chama de ?impasse psíquico? foi Beto Amaral, produtor e corroteirista de ?Insolação?.
? Quando terminamos de fazer aquele filme, ele me disse: ?Quero fazer o SEU filme. Que projetos você tem na gaveta? ? conta Daniela. ? A bem da verdade, eu tinha dois, uma história de época e um drama mais contemporâneo. Ele me obrigou a sentar e a escrever os dois. Desenvolveu os dois projetos junto comigo, na esperança de me arrancar desse trauma. Inclusive já filmamos os dois. O outro chama-se ?Banquete?, e pretedemos lançá-lo ainda neste ano também.
PRISÃO DO PAI, ZIRALDO, INSPIROU CINEASTA
Quando chegou o momento de ?escalar esse Evereste que é fazer um filme sozinho?, Daniela saiu da zona de conforto dos dramas contemporâneos codirigidos por seus parceiros e enfrentou o desafio do drama histórico. ?Vazante? se passa no interior de Minas Gerais no início do século XIX, quando o Ciclo do Ouro já se esgotava. A trama se desenvolve em torno de Antonio (o ator português Adriano Carvalho), fazendeiro e dono de escravos que, ao voltar de uma viagem descobre que a mulher morreu durante o trabalho de parto. Isolado em sua fazendo decadente e improdutiva, ele se casa com Beatriz (Luana Nastas), menina de 12 anos ainda incapaz de lhe dar um filho.
Novamente sentindo-se sozinho, Antonio refugia-se em longas expedições para negociar escravos e gado, deixando a jovem esposa sozinha na imensa propriedade. Esta, tal como as crianças de sua idade, acaba se entregando às curiosidades típicas dessa época da vida, e encontra nos filhos dos escravos a sua principal companhia. A solidão abre espaço para pequenas aventuras, descobertas amorosas da jovem, tratada como uma sinhá criança em meio a um ambiente em que a exploração moral e sexual entre raças e as hieraquias de poder entre senhores de engenho e escravos e entre homens e mulheres acabam alimentando um cenário de tragédia anunciada.
? Tinha vontade de fazer um filme sobre esses temas há pelo menos 20 anos. Na verdade, acho que há uns 40 anos porque, como filha da ditadura, vi meu pai (o cartunista Ziraldo Alves Pinto) ser levado de casa pela polícia armada até os dentes, e eu lá agarrada às pernas dele, numa cena patética ? lembra Daniela. ? Eu tinha talento para desenhos e tudo mais, mas acabei indo estudar História na UFF porque queria entender essa situação em que um pai é arrrancado da companhia de sua família sem ter matado ou roubado ninguém. Não cheguei a me formar, mas acabei fascinada pela História do Brasil.
“PRECONCEITO E LEIS ESTÚPIDAS”
?Vazante? é inspirado em um episódio testemunhado entre os antepassados da familia Alves Pinto.
? Entre as muitas histórias da família dele, fiquei impressionada com a de uma menina de 12 anos que se casa com um homem de 45. E ele espera a jovem mulher ter a primeira menstruação para consumar o casamento. Enquanto isso, ele a corteja trazendo bonecas de suas viagens de trabalho ? explica Daniela. ? Fiquei fascinada pela ideia de quantas coisas nós, brasileiros, ainda precisamos vencer para nos livrarmos dessa maldição que é o preconceito, e de leis estúpidas. Uma das grandes doenças da Humanidade é a escravidão humana, em todos os sentidos. A gente está neste longo caminho de libertação desses preconceitos, e agora vemos esses retrocessos no meio desse percurso, dentro e fora do Brasil.
O filme foi rodado em locações no interior de Minas, em uma mansão do século XVIII, localizada a uma hora de viagem da cidade histórica do Serro. A composição de época é reforçada pela fotografia em preto e branco do fotógrafo chileno Inti Briones (de ?Exilados do vulcão? e ?Pequeno segredo?, entre outros títulos). A única canção ouvida na trilha sonora é ?A noite do meu bem?, imortalizada por Dolores Duran nos anos 1950, em versão cantada por Tom Zé, gravada nos anos 1970, que é ouvida somente nos créditos finais da produção.
? A canção é uma forma de criar um paralelo entre esses períodos marcantes da História brasileira, o início do século XIX, e os anos 50 e 70 do século passado, um período de grande efervescência criativa ? argumenta Daniela, que acredita que ?Vazante? seja um produto do estado de espírito do mundo nos dias de hoje. ? Pode parecer uma piada, mas a questão do machismo, do patriarcalismo, as diásporas dos refugiados, tudo o que discutimos em ?Vazante? faz dele um filme contemporâneo. Porque são questões do século XIX que ainda não foram resolvidas no século XXI.
