Cotidiano

Crítica: Marcílio França Castro escreve dois livros dentro de um só

Marcilio_CiaDasLetras-5_DIV.jpgRIO – Consta que os siameses Chang e Eng, apesar de inseparáveis e unidos pelo fígado, apresentavam temperamentos e comportamentos bastante distintos. Este livro guarda alguma semelhança com os famosos gêmeos: embora aqui colados e fruto de uma gênese comum, cada um dos ?livros? que o compõe é singular; há características comuns, mas tanto forma quanto afeto parecem encarnar um projeto estético distinto.

Assim, o primeiro, ?Coleção de papéis?, traz narrativas mais convencionais: contos, tout court, a maioria marcada por um temário envolvendo sutis anomalias na arte, em seu exercício e fruição. Você tira pelo protagonista do primeiro, ?Roteiro para duas mãos?, que é uma espécie de dublê de mãos de escritores: nos filmes, ele faz as partes nas quais se mostram as mãos dos escritores em exercício de escrita. Que esse conto esteja na abertura me inclina a uma leitura alegórica e me faz perseguir, através dos autores aos quais alude, uma rota genealógica para o livro que estou lendo. Embora seja um engodo achar que isso resolve o livro, buscando relações de parentesco, há um conto que evoca uma estrutura narrativa sincopada familiar aos leitores de Cortázar, ao passo que outro me pareceu um romance tardio de Bernardo Carvalho em versão resumida e, em outro, pensei ver, disfarçada, uma remissão ao Sr. Cogito, personagem de tantos poemas formidáveis de Zbgniew Herbert. Há boas ideias, transações requintadas, e tudo aqui me interessa.

ZIRIGUIDUM CONCEITUAL

Tudo me interessa, mas nada me perturba, o que muda de figura quando passamos ao ?Livro II?, que efetivamente se chama ?Histórias naturais?. Organizado em seções, digamos, temáticas (?Da desordem?, ?Das sombras?), o que temos são objetos textuais breves, heterogêneos, e que demandam considerável ziriguidum conceitual para se encaixarem em um gênero dado da narrativa. Daí a propriedade de certa evocação borgiana, pois o nome certo para isso parece ser mesmo ?ficções?, entendidas e realizadas como problemas em aberto, capitalizadoras da potência de invenção que em seu impulso ataca os gêneros, os interroga, os transforma. Borges também aparece na população de copistas medievais, cartógrafos, objetos insólitos, loteria ? mas se ficasse nisso estaríamos no campo da emulação e do derivativo e pouco mais. E há mais.

Comprimidas de maneira muito peculiar, essas narrativas não parecem ser resumos de nada, e a integridade do seu caráter mínimo (salvo engano, a mais longa tem três páginas) é parte do que constitui sua pungência. Há um pathos meio enigmático, mas ao mesmo tempo (e paradoxalmente) sempre acessível, e que é fruto em alguns casos de uma operação que parece simples: tomar um incidente ordinário (encontrar uma fotografia do pai; dar um presente; adquirir um livro) ou um momento relativamente vulgar da história filosófica e literária (um conhecido lance da ?Ilíada??, um capítulo de uso escolar da biografia de Tales de Mileto, o incontornável sacrifício de Isaac pelas mãos de Abraão) e submetê-lo a uma intensidade descritiva e hermenêutica tamanha que, na saída do texto, sempre há algo que se deslocou: o objeto da atenção, o próprio narrador, quem lê. Nas narrativas em outros tempos e lugares, o que vem à tona não é seu exotismo, ou qualquer erudição para tirar onda, e muito menos o didatismo vão de autor que ensina ou explica.

TEXTOS COMO MOLAS

O funcionamento desses textos é como o de uma mola que, manipulada até seu limite, retorna a um estado inicial de capacidade propulsora, e quietamente leva ao texto seguinte, e ao seguinte, todos fazendo mais ou menos a mesma coisa ? até que o livro acaba, em um golpe tão habilidoso que me faz redescrever o que julguei antes uma infeliz decisão editorial, a de reunir esses dois livros tão díspares, e que me lembrou o que um personagem de um dos contos iniciais, esclarecendo um problema de história cartográfica, diz: ?Quando a estética é nômade, o mapa é móvel?.

*Antonio Marcos Pereira é professor da UFBA

??Histórias naturais: Ficções??

Autor: Marcílio França Castro

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 196

Preço: R$ 39,90

Cotação: Ótimo