Cotidiano

Crítica: Lydia Davis explora a potência estética da vida comum

2013 626935724-2013 626751734-2013070480807.jpg_20130704.jpg_20130705.jpg

RIO – Uma canção de Chico Buarque evoca um investigador do futuro capaz de remexer nos escombros de um amor passado e falar do ?eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos?. Único romance de Lydia Davis, ?O fim da história? oferece algo dessa natureza: uma pesquisa sobre uma experiência amorosa, escrutinada com perícia e perplexidade, que trafega sem temor na abundância de tensões, paradoxos, esquisitices e clichês que são parte do que resumimos quando falamos em ?amor?.

Na narrativa, uma mulher de uns 35 anos tem um relacionamento com um homem de uns 22. Ambos são ligados à literatura: tradução, leitura de poesia, ensino, o mundo universitário e literário aparece em suas facetas mais precárias, menos espetaculares, em particular porque os dois ainda parecem estar se firmando nele. Ela mais à frente, por experiência, por competência (é professora e tradutora); ele como neófito, aluno de graduação, ainda incerto inclusive sobre a fisionomia que sua eventual autoria tomará (escreve poemas; ambiciona escrever para teatro; produz um conto, mas acreditava que seria um romance).

Os dois se encontram, embaraçam-se eroticamente, trocam declarações de amor, coabitam ? e vivem o esgarçamento, a dissipação e a separação. Finda a relação, anos depois a mulher decide contar a história, e conta inclusive das dificuldades de escrever o livro que lemos, de suas idas e vindas entre a rememoração, sua vida atual e a escrita.

HABILIDADE EM PRODUZIR ESTRANHAMENTO

Salvo a peculiar conexão profissional do casal com a literatura, quanta trivialidade: a história de um relacionamento, um acerto de contas com o passado se resolvendo em uma mescla de nostalgia pelo que se perdeu e tentativa de expiação de culpas, balanço final. Parece quase um outro ?Comer, rezar, amar?.

Longe disso, o que temos aqui é acuidade analítica única e destemor formidável ao explorar ?um tipo dramático de feiura? e lidar com afetos pouco louváveis. Incompreensão, egocentrismo, crueldade, tolice, imaturidade emocional, incompetência afetiva, está tudo aqui, junto com o enigma da fascinação pelo outro, a maneira como o enlevo dá lugar às estabilidades do relacionamento, o que dá lugar à dependência, que por sua vez dá lugar à possessividade, que eventualmente resulta em descaso… e por aí vai.

E vejam que interessante: uma característica que percorre a ficção de Davis é sua habilidade em produzir estranhamento a partir das coisas mais ordinárias, e elevar nossa percepção da potência estética da vida comum. Temos, em seus cinco livros de contos, narrativas sobre uma mosca, ratos, a digestão, comprar um café, reduzir despesas domésticas. Aqui, ela segue nessa linha, e se o conteúdo da narrativa parece uma história muito rudimentar (?Mulher e Homem se encontram, têm um relacionamento, se separam, anos depois Mulher conta a história, fim?), a maneira como é abordado esse conteúdo é sui generis, e tudo é escrutinado com rigor e vigor.

A narração valoriza ambivalências do lembrar, como em ?Ele pode estar certo. O que eu lembro pode estar errado?. E do sentir: ?Eu queria tê-lo perto de mim e ao mesmo tempo queria me afastar dele?. Lances assim fazem parecer que há ao mesmo tempo uma descrição meticulosa da mecânica dos corpos e dos movimentos da experiência, e um entendimento de que certa inconsistência aqui é matéria-prima dos afetos, e não componente eventual. Fala-se da propensão filosófica da ficção de Davis, pois a minúcia analítica é cartesiana ? mas o universo afetivo é espinosiano, deleuziano, multiforme, cheio de pontas soltas.

A narradora diz: ?Vejo que tenho distorcido um pouco a verdade, acidentalmente em alguns pontos, em outros deliberadamente. Estou reorganizando o que de fato aconteceu para que pareça menos confuso e mais crível, mas também mais aceitável e mais palatável?. Menos confusa, mais aceitável: que verdade é essa? Verdade da ficção, certamente, mas em particular de uma ficção que toma para si o gesto de se debruçar com incisividade analítica sobre ocorrências de grande tumulto afetivo, não para domar esses incidentes, explicando-os, ou produzir uma narrativa que os resolva em uma mensagem ou uma lição para a vida.

À medida que cada componente da relação é recuperado ? um incidente, uma carta, uma viagem, uma declaração de amor ? essa recuperação é também transformada ao passo em que a história é contada, e o mosaico composto pelas várias lembranças vai se delineando em esquemas de influência recíproca e complexidade crescente pois, talvez, nada seja realmente simples. Mais próximo da ?vida? que isso é difícil encontrar.

*Antonio Marcos Pereira é professor da UFBA