Cotidiano

Crítica: Flávio Izhaki faz investigação ?policial? do próprio romance

2013 675811620-2013 675003992-2013122375952.jpg_20131223.jpg_20131228.jpgRIO – Um dos traços mais característicos da literatura moderna foi a reflexão sobre a natureza do literário num movimento de dobra em que seu processo e sua experiência se tornavam centro e objeto da escrita. Essa literatura mostrou sua consciência cética a respeito das ilusões possíveis de referencialidade objetiva, e o literário adquiriu sua autonomia nessa distância das funções comunicativas e representativas da linguagem.

O novo romance de Flávio Izhaki ,?Tentativas de capturar o ar?? (Rocco, 2016), convida a participar de um enredo filológico cuja narrativa se constrói numa investigação quase policial da genealogia do próprio romance. O livro se abre com dois prefácios que explicitam o percurso derivado do projeto inicial de escrita biográfica. Alexandre Pereira, principal autor das anotações apresentadas, pesquisou a vida de um escritor já falecido, Antônio Rascal, que depois de três romances relevantes para a literatura brasileira cessou de publicar. Pereira trabalha na biografia do enigmático escritor até sofrer um acidente de carro fatal.

As anotações que deixa são fragmentos de um processo de busca que, editados e acompanhados de prefácios e um posfácio de autoria alheia, confundem-se com o livro. Emerge daí a história de um manuscrito apócrifo que, com variedade de estilos e diversas autorias, oferece um mosaico da história biográfica a ser reconstruída. Confundem-se a história da vida de Rascal e a relação do biógrafo com o próprio pai, priorizando o relato da investigação, guiado pelo enigma do silêncio precoce do escritor e pelas hipóteses sobre o que o teria motivado a parar de publicar.

A inclusão de inéditos de Rascal determina o rumo da pesquisa de Pereira, pois entre eles há uma confissão de homicídio cometido por Rascal quando atropela por acidente uma pessoa e, em vez de socorrer a vítima, joga o corpo no rio. Esta revelação intriga o biógrafo, que encontra aí um motivo possível para o silêncio do escritor. Por outro lado, Pereira não consegue saber com certeza se se trata de confissão ou de ficção em primeira pessoa. Para a viúva e para o editor, não há dúvida sobre o caráter ficcional dos escritos de Rascal, mas para o biógrafo há neles um fato que poderia elucidar os rumos do biografado.

O segundo romance de Izhaki, ?Amanhã não tem ninguém?? (Rocco, 2013), narrava a história de uma família pequeno-burguesa carioca de origem judaica, numa construção narrativa complexa e com variedade de pontos de vista sobre os acontecimentos cotidianos de personagens de várias gerações. Neste novo, também se destaca a habilidade na construção de uma estrutura narrativa elíptica e fragmentada, conduzida numa linguagem direta e coloquial, sem entraves à compreensão nem experimentos sintáticos próprios da escrita modernista. Podemos assim observar como se concilia legibilidade discursiva com complexidade elíptica e incompletude fragmentária da estrutura.

LITERATURA PÓS-REALISTA

Por um lado, temos um discurso oral centrado na primeira pessoa, que expressa uma realidade cotidiana de classe média facilmente identificável em suas características socioculturais; e, por outro, um discurso que se fundamenta sobre um mundo textualizado em que já não existem ilusões referenciais e no qual a representação sempre se dirige a outra representação, criando um jogo sedutor de semelhanças e analogias.

Temos portanto um realismo que não se apoia na representação descritiva e nem no projeto subversivo da relação que caracterizava a literatura metaficcional, onde a denúncia apontava a falta de consistência ontológica do mundo em detrimento da força real da ficção. Na literatura pós-realista, que a meu ver caracteriza uma parte significativa da ficção contemporânea, observa-se uma inocência coloquial da enunciação íntima, que na estrutura narrativa desafia as fronteiras do domínio textual.

No caso do romance de Izhaki, a indiscernibilidade entre confissão e ficção evoca a fatalidade de um evento que escapa à narração. A introdução do autobiográfico e das memórias íntimas é um dos recursos deste realismo particular, que só escapa do textualismo na medida em que consegue evidenciar uma vida maior e diferente do texto. No romance anterior de Izhaki, o tema era a fragilidade diante da doença; neste, é a emergência da realidade do crime e de sua confissão que marca a fronteira do ficcional.

Karl Erik Schøllhammer é professor do Departamento de Letras da PUC-Rio

?Tentativas de capturar o ar?

Autor: Flávio Izhaki.

Editora: Rocco.

Páginas: 224.

Preço: R$ 29,90.

Cotação: Bom.