Cotidiano

Crítica: A alma e a terra no disco póstumo de Serena Assumpção

RIO ? Cada uma das faixas de ?Ascensão? (Selo Sesc), de Serena Assumpção, é dedicada a um orixá, como explicitam seus títulos. E cada uma delas também é dedicada a um ou dois personagens ? uma lista que inclui Gentileza, Madame Satã, Nina Simone, Villa-Lobos, Elis, Paco de Lucía e Gandhi, com relações menos ou mais diretas ao que se ouve ali. E em cada uma das canções, Serena promove um encontro de artistas ? sobretudo surgidos a partir dos anos 2000 (sua irmã Anelis Assumpção, Tulipa Ruiz, Céu, Mãeana, Filipe Catto, os produtores DiPa e Pipo Pegoraro) ou que são referências para essa geração, como Tetê Espíndola e Letieres Leite. São portanto três universos ? o dos orixás, o dos personagens, o da nova música brasileira ? que se cruzam ali. Mitologias próprias, que se espelham e dialogam, apontando formas de viver, de ouvir e fazer música. ?Um gesto de água? de Serena, como define Tiganá Santana no texto de apresentação do álbum.

Morta em março deste ano, aos 39 anos, vítima de câncer, Serena havia partido de temas de domínio público e composições próprias e de Gilberto Martins para traçar seu painel. O resultado é um álbum que pode ser ouvido como um disco religioso, ou como um exemplar da música brasileira contemporânea. A melhor forma, porém, é entendê-lo como as duas coisas. Ou seja, percebendo como espírito e terra (tradição e pop), que se entrelaçam em ?Oxumaré?, nos graves impossíveis da MPC de Domenico Lancellotti, no prato e faca de Moreno Veloso ? Bem Gil nos violões e Mestrinho no acordeon a aproximam da linguagem do rádio mesmo.

Da potência da abertura com ?Exu? ? Karina Buhr, Luê e Zé Celso Martinez Corrêa (declamando) estão entre os convidados ? ao spiritual kikongo de ?Do Tata Kzambi?, do grupo Source de Vie, o disco da filha de Itamar Assumpção trata de encontros que se dão em muitos planos. ?Pavão? insere a ternura acridoce de ?Walk on the wild side?, de Lou Reed, na poesia bruta de Joãzinho da Gomeia. ?Xangô? aproxima o violão de Caymmi e de Kiko Dinucci. Tudo ali é carne, tudo é alma.

Cotação: Ótimo