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Crise de identidade: a marca do desastre do Barcelona em Paris

O placar escandaloso e o descalabro que foi a atuação do Barcelona em Paris deixam o mundo boquiaberto. De fato, um 4 a 0, por mais que tenha sido placar idêntico ao imposto pelo Bayern de Munique aos catalães há quase quatro anos, tem sua carga de inusitado. Mas é inequívoco que uma queda estrepitosa, contundente, era uma espécie de desastre anunciado.

O começo e o fim da história têm a palavra estilo como fio condutor. Há clubes em que a forma de jogar, a maneira de tentar vencer, ultrapassa os limites de mera escolha técnica e tática. São uma espécie de selo de identidade, cultura e orgulho de todo um clube. No caso do Barcelona, de toda uma região da Espanha. A posse de bola, a troca de passes, a tentativa de submissão do rival através do domínio técnico das partidas e, claro, a conquista de títulos com a assinatura do que se convencionou chamar de “DNA Barça”, transcendeu fronteiras da Catalunha. A sublimação da beleza ao jogar futebol, atingida com especial brilho na era Guardiola, entre 2008 e 2012, influenciou a forma de jogar da seleção espanhola e até da alemã, as duas últimas campeãs mundiais. Era a afirmação da Catalunha através do futebol.

BARCELONA

Estilo, ideia de jogo, é também um porto seguro a que times podem se apegar em horas difíceis. Aos poucos, o Barcelona se distanciava dele. Em dado momento, durante seu período à frente do time, Guardiola chegou a dizer que, “se pudesse jogar com onze meio-campistas, o faria”. O eixo do jogo barcelonista era o meio-campo, onde se estabelecia o controle, a rédea, através da presença de jogadores como Iniesta e Xavi, guardiões do estilo, formados no clube e educados, desde criança, a praticar o modelo encantador.

A temporada 2014-2015 é uma espécie de ponto de ruptura. Chega Luís Enrique ao comando de um time que, um ano antes, antecipara a chegada de Neymar após uma dura derrota para o Bayern de Munique, um 7 a 0 no placar agregado dos dois jogos semifinais da Liga dos Campeões. Chegou também Suárez e o tridente ofensivo não tardaria a assombrar o mundo. Era natural que o peso de três atacantes tão bestiais fizesse meio-campo e ataque dividirem protagonismo. Aliás, somente num clube com selo de identidade tão forte quanto o Barcelona, um meio-campo poderia compartilhar protagonismo com um ataque formado por Messi, Neymar e Suárez.

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Campeão Espanhol, da Copa do Rei e da Liga dos Campeões, aquele Barcelona parecia a receita pronta e acabada do melhor dos dois mundos. As pernas já não permitiam a Xavi, em sua temporada final no clube, ser titular. Entrou Rakitic para formar, junto a Busquets e Iniesta, um meio-campo que seguia movendo a bola como nos melhores tempos. O Barcelona domava os rivais, tocava, mantinha a posse de bola avassaladora. Mas, sempre que necessário, sempre que alguém ousava pressioná-lo, mostrava ter também a excelência de um jogo mais direto, de soluções rápidas: o contra-ataque para a velocidade e a capacidade de soluções de um dos maiores trios de atacantes da história.

Se havia uma palavra que sempre definira o jogo do Barcelona, esta era sofisticação. Jogava-se com as pernas e com a cabeça. A forma de mover a bola e buscar posição em campo exigia um entendimento próprio do jogo. Aos poucos, pareceu irresistível a atração pela aparente capacidade do tridente de solucionar qualquer jogo, mesmo prescindindo do apoio do restante do time, da troca de passes que abria defesas e esgotava defensores. O Barcelona simplificou seu jogo. A tal ponto que, como publicou o jornalista Ramon Besa em texto no jornal “El País”, há cerca de dez dias, o “Barcelona esqueceu de jogar futebol”. O eixo se deslocou totalmente do meio-campo para o ataque. Havia menos pensamento, menos elaboração. Cada vez mais, tudo dependia do acionamento rápido dos atacantes e de suas soluções, ainda que com bolas longas. Como capacidade técnica individual, ainda se produziam momentos únicos. Como estilo, era vulgar.

O Barcelona renunciara a seu porto seguro, ao seu estilo, a sua identidade. A atual temporada mostrava sinais cada vez mais claros. Pressionar o Barcelona em sua saída de bola produzia danos cada vez mais destrutivos ao jogo. O tridente, Messi em especial, se encarregava de dar soluções. Mas, só no atual Campeonato Espanhol, foram seis tropeços em 20 jogos contra times de menos aspirações. Algo não ia bem. Para piorar, Busquets, o volante do primeiro passe, iniciador das jogadas, peça fundamental no funcionamento de um modelo característico deste jeito de jogar, vive sua pior temporada, sabe-se lá por questões físicas ou, por que não?, pelo peso de um time que cada vez controla menos as partidas. E, como num golpe de misericórdia, Iniesta, que joga como quem carrega nas mãos a cartilha do modelo Barça, parece sentir o peso do tempo.

Chegamos a Paris. Por 25 minutos de um futebol de ritmo alucinante do Paris Saint-Germain, nunca o Barcelona precisara tanto ser Barcelona. O time francês mostrava uma exuberância física e de organização para pressionar a saída de bola catalã de forma a sufocá-lo em sua própria área. As pontes, os caminhos que levam a bola tocada, bem trabalhada da defesa ao ataque, não existiam mais. Via-se um time contra as cordas, sem saída. Com a bola, o PSG era mais Barcelona do que o próprio Barcelona: movia a bola com a fluência que sempre caracterizou o rival. Os meias Rabiot, Matuidi e, principalmente, Verratti, suplantavam com sobras o trio Busquets, Iniesta e André Gomes. E se associavam a Di Maria, Draxler e Cavani. A bola era tocada da área defensiva à área do Barcelona. Um massacre.

O italiano Verratti, aliás, ofereceu em Paris uma exibição que teria a assinatura de La Masia, a fábrica de jogadores do Barcelona. Foi o típico volante que desarma graças à posição, ao entendimento do jogo, não ao carrinho e à dividida. Foi também o construtor, capaz de ditar os rumos da bola. O dono do meio-campo.

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Com o tempo, o ritmo alucinante cobraria um preço. Já vencendo, o PSG ofereceu campo ao Barcelona. Expôs nova faceta da crise de jogo deste Barcelona atual. Há pouco tempo, seria impensável ver os catalães com o domínio da bola para construir, mas sem os velhos mecanismos para quebrar uma marcação. O time se desabituou a praticar seu velho jogo. Com o tridente marcado, só Neymar conseguia raras arrancadas. Todas, tentativas individuais, isoladas. As perdas de bola seguidas de um time com talentos de sobra, mas sem funcionamento, foram a receita para que a derrota ganhasse ares de catástrofe. Organizado para tocar a bola com rapidez, de forma vertical quando o jogo pedisse o contra-ataque, o PSG machucou o Barcelona com verticalidade rumo ao gol. Draxler e Di Maria, acionados pelos meias e com espaço à frente, viam-se mais à vontade do que nunca. E Cavani foi o finalizador implacável, maior artilheiro da Europa na temporada.

Há muitas qualidades neste PSG. O que impõe notar que o Barcelona não caiu diante de um qualquer. A virada no jogo de volta poderia ser oficialmente decretada como impossível, não estivéssemos falando de futebol, de Barcelona e de um time cheio de craques desequilibrantes. O alarmante é ver o enredo de um 4 a 0 se construir a partir do progressivo distanciamento de uma identidade. Passa por aí a reconstrução. Ou por assumir que o divórcio com o estilo é definitivo. Neste caso, cabe edificar um novo modelo, menos dependente da entrega à própria sorte da brutal concentração de talentos no ataque. No futebol, por vezes, a pior crise é a de identidade.