Cotidiano

Companhias de teatro lançam peças atentas ao ciclo político do país

INFOCHPDPICT000064375056RIO ? Em um contexto de desilusão generalizada com a política, duas companhias vindas de São Paulo se utilizam de diferentes abordagens, em forma e conteúdo, para investigar a ascensão e a queda de um projeto político de esquerda. E, com elas, a fé e a descrença na política como ferramenta para melhorar as condições de vida da classe trabalhadora do país.

Com uma trajetória de 21 anos e um sólido repertório de peças que refletem criticamente sobre a sociedade atual, a Cia. do Latão apresenta a partir desta quinta-feira, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), sua mais recente montagem, ?O pão e a pedra?, escrita e dirigida por Sérgio de Carvalho. Já o grupo Tablado de Arruar, em atividade desde 2001, traz pela primeira vez ao Rio quatro peças de seu repertório: a trilogia ?Abnegação? e o espetáculo ?Mateus, 10?, que serão apresentados também a partir desta quinta no Sesc Copacabana.

?O pão e a pedra? viaja no tempo para recriar a grande greve do ABC, de 1979, de onde saíram algumas das principais lideranças que fundariam o Partido dos Trabalhadores no ano seguinte. Já o Tablado de Arruar se atém ao presente. A trilogia ?Abnegação? investiga justamente o declínio do partido após assumir o comando do país. E ?Mateus, 10? oferece um olhar sobre a ascensão das igrejas neopentecostais no país.

? Na nossa peça observamos de que modo diferentes forças e movimentos, como o sindicalismo, a Igreja progressista e a militância estudantil, se uniram numa greve e numa luta que mudou as coordenadas da política de esquerda no país ? diz o autor e diretor de ?O pão e a pedra?. ? É uma peça sobre transformação. Os personagens passam por um aprendizado político. Suas vidas são alteradas por essa greve. Mas essas mudanças estão ligadas a um aprendizado prático, não só ao nível da consciência. Ou seja, eles aprendem que é preciso se colocar no lugar do outro, ouvir e se unir ao outro para avançar junto, tomando a defesa dos pobres.

Em cena, nove atores representam as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores envolvidos na greve de 1979. No primeiro ato acompanham-se os 15 dias iniciais de máquinas paradas. No segundo, os 45 dias de ?trégua? e negociações até o fim da greve. Entre pressões internas e externas, os personagens buscam um meio de organizar e equalizar suas diferenças em prol de interesses comuns: melhores salários e condições de trabalho e de vida.

? São grupos tentando sair de suas posições e de seu isolamento, tentando lidar com suas diferenças, para encontrar um lugar comum. Porque, em comum, há uma crítica à ordem do capital ? diz Carvalho. ? Eles buscam o outro para tecer uma união política. Acho que é isso que falta hoje, não só à esquerda. As pessoas estão acomodadas demais com a vitória do capital, com oito homens concentrando para si uma riqueza equivalente à renda de 3,6 bilhões de pessoas.

Em ?O pão e a pedra?, a trama se desenvolve em torno do caso de uma mulher operária que decide se disfarçar de homem a fim de melhorar de vida, o que abre a possibilidade de reflexão sobre a situação feminina tanto no ambiente fabril do passado quanto nas relações de trabalho no mundo contemporâneo. Mesclando material documental, filmes e entrevistas com textos ficcionais e uma trilha sonora original, o diretor almejou construir uma obra, ao mesmo tempo, política e lírica.

? Os atores fazem de peito aberto ? diz o diretor. ? A partir da questão de fundo, de uma greve, a peça trata da responsabilidade que temos sobre o nosso tempo. A greve ensina aquelas pessoas que o tempo delas não deve ser domesticado, que elas podem ser responsáveis pelo tempo delas.

A Cia. Tablado de Arruar apresenta 'Abnegação 3', com direção de Alexandre D.jpgJá o Tablado de Arruar investiga o declínio do projeto político iniciado no primeiro governo de Lula e encerrado com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Em ?Abnegação I? (de hoje a domingo) quatro personagens ligadas ao poder se reúnem para debater um acontecimento misterioso, que a plateia, ou a sociedade, não chega a saber qual é. Em sua forma, a peça dá conta ?do modo como as coisas acontecem na política do Brasil?, diz o autor e diretor Alexandre Dal Farra. Já ?Abnegação II ? O começo do fim? (de 26 a 29 de janeiro) torna claro o que a peça anterior oculta: a morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel é o ponto de partida de uma trama que propõe reflexões sobre a relação entre a política institucional e a violência no estado. Por fim, em ?Abnegação III ? Restos? (de 2 a 5 de fevereiro), observa-se uma sociedade em colapso, após sucessivos governos de esquerda cujas estratégias de inclusão social passavam fundamentalmente pelo incentivo ao consumo.

? A trilogia ?Abnegação?, como um todo, acompanha uma trajetória de declínio. Há algo que parece estar presente em todas as peças, algo que se liga à questão da crença ? conta Dal Farra. ? Chegamos ao fundo do poço da sensação generalizada de que nada tem como mudar dentro desse esquema, dentro dessa estrutura. Esse tipo de sensação reflete uma falta total de legitimidade. Falta de crença. Deixamos de acreditar no nosso sistema político há muito tempo.

Segundo o autor, que partilha a direção com Clayton Mariano, a própria forma de cada trabalho acompanha ?esse declínio real?.

? No último trabalho buscamos olhar para a sociedade que todo esse processo deixou ? afirma. ? Olhar para o que restou desse declínio, quem são os filhos desse mundo. Procuramos olhar para algo que vivemos e pensar sobre as consequências disso. Para pensarmos num futuro à esquerda, é crucial, antes, olhar para o passado e para o presente. Nosso futuro vai nascer desse olhar para nós mesmos, sem nenhuma ilusão, sem nenhuma autocomplacência. Esse é o intuito das peças.