Cotidiano

Com Biblioteca-parque fechada, coral com população de rua perde sua 'casa'

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RIO ? Todos os dias, Vera Lúcia Reis, 48 anos, acordava em alguma esquina na área
do Castelo e ia andando até a Biblioteca Parque Estadual, na Avenida Presidente
Vargas. Até seu fechamento, em dezembro do ano passado, a unidade do Centro
vinha sendo um descanso do ambiente agressivo das ruas, onde ela mora há seis
meses. Lá, trocava a falta de perspectiva profissional por aulas de inglês,
informática e teatro, além de ter acesso a internet e livros. Mas foi sua
participação no coral Uma Só Voz, projeto que visa o desenvolvimento das artes
para a população de rua, que a ajudou a de fato espantar a dependência
química.

? Quando entrei no coral tinha recém ido morar na rua e estava pirando ?
conta Vera. ? Entrava dia e saía dia, o coral foi me acalmando. Na rua, voltei a
beber e a me drogar, mas o coral funcionou como uma válvula de escape. E não só
o coral, mas atividades da biblioteca como um todo. Enquanto você está lá não
fica na rua pensando besteira. Nem fica perto de pessoas te convidando a fazer
coisas que não são lícitas. Só quem frequentava sempre, como nós, sabe
quantificar o fechamento da Biblioteca Parque… No Centro, não tem outro lugar
como esse.

Coral Uma Só Voz ensaia na Catedral Metropolitana

Sem reabrir desde o recesso do final do ano passado, a estrutura da
Biblioteca Parque Estadual é uma ausência dolorosa para muitos de seus
frequentadores em situação de rua. Por sua localização central, a unidade da
Presidente Vargas tinha um público ainda mais diversificado do que as de
Manguinhos, Rocinha e Niterói (a única das quatro que ainda permanece aberta).
Circulavam por lá doutores e concurseiros, mas também camelôs, estudantes das
redes pública e privada e aposentados. Talvez pelo ambiente plural, as pessoas
em situação de rua consideravam o lugar mais acolhedor do que outros centros
culturais.

? Nunca fomos um espaço assistencialista, mas acabamos nos tornando
referência de muitas pessoas em situação de rua e uma espécie de elo entre eles
e suas possibilidades. Penso que o maior legado é o pertencimento à cidade,
como, a partir dessa troca com a biblioteca, eles se reconhecem, enxergam novas
possibilidades ? diz Fábio Moraes, que trabalhou como mediador social na
Biblioteca Parque até o seu fechamento. ? Lá eles eram reconhecidos como
indivíduos, pelos seus nomes, carteirinha feita com foto, substituindo o
comprovante de residência por uma ficha social, que por suas perguntas já
quebravam o gelo inicial. Isso é raro em espaços públicos e centros culturais,
normalmente tão segregadores.

Mesmo com a biblioteca fechada, o coral continua suas atividades. Nas últimas
semanas, eles se apresentaram num evento no Parque Olímpico e fizeram ensaios na
Catedral Metropolitana. Nas apresentações, são aplaudidos por curiosos, recebem
beijos e abraços e são requisitados para selfies com turistas. Sem a estrutura
da biblioteca para as aulas, porém, fica a incerteza sobre o futuro.

? A dor da gente foi perder a estrutura da biblioteca, onde éramos recebidos
como se estivéssemos em casa. A gente não tem para onde ir, já que não sabe se
vai poder ficar na Catedral. Estamos sem casa ? diz Rico Vasconcellos, diretor
dos corais do Uma Só Voz.

A relação com a música ajuda muitas pessoas em situação de rua a reinventar a
própria imagem, acredita ele.

? A pessoa vive invisível para a sociedade, e ao cantar atrai os olhares e
percebe que pode fazer algo diferente ? diz. ? Cantando eles trabalham o
sentimento, liberam as suas emoções. E tem todo o efeito positivo na dependência
química e nas doenças mentais.

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O projeto acolhe diversos músicos, que sonham em conseguir um novo rumo
profissional. É o caso do percussionista José Geraldo do Santos Mattos, 54 anos,
que mora em um abrigo em Santa Cruz. Filho de Nelson Sargento, ele é nascido e
criado no Morro da Mangueira. Para pesquisar ciência e língua portuguesa na
biblioteca, pegava o trem e descia na Central do Brasil. Com o coral, participou
de uma peça musical sobre Charlie Chaplin. Seu objetivo agora é conseguir um
trabalho, ?independente do que seja?.

? A biblioteca abriu um espaço muito importante para a população de rua que
ficava ali na Central do Brasil e no Campo de Santana ? explica Mattos. ? O
fechamento deixou essas pessoas sem atividade nenhuma. Ficaram dispersas e
ociosas, andando por aí, pelo Centro… Como moro em abrigo, já tinha acesso a
livros e cultura, mas quem vive na rua não tem nada disso.

No início de dezembro, cerca de 300 frequentadores fizeram uma manifestação
na Presidente Vargas, ?abraçando? a Biblioteca Parque Estadual para protestar
pelo seu fechamento. Integrante do coral, Alessandra da Silva, 51 anos, estava
lá. Vivendo em situação de rua, ela não perdeu a esperança de ver o espaço
reabrir:

? A gente não tem muita opção, vai procurar um emprego e não consegue, vai
procurar um curso e não tem vaga, então fica rondando por aí, só aprendendo o
que não presta ? lamenta. ? Lá na biblioteca a gente estava aprendendo, fazia um
teatro, usava o computador, e não ficava com a cabeça em branco, pensando em
procurar drogas.