Opinião

Coluna Direito da Família: Olhos e lares vazios

No dia em que Bentinho e Capitu iniciaram seu romance, não pensavam que haveria um Escobar e jamais imaginaram que um dia seriam apenas memórias na vida um do outro ou que Bentinho tornar-se-ia Casmurro pelo fardo da dúvida. O fato é que o homem ciumento pôs em dúvida sua musa e apagou o brilho dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada, além de ofuscar o fruto daquele amor tão finamente construído pelas mãos machadianas. São capítulos comuns do cotidiano, quando o amor expressamente consentido quando da celebração do casamento esmorece.

O casamento traz consigo inúmeros deveres entre os cônjuges, sendo um deles o que se chama de coabitação. Coabitar não é só habitar junto, é a comunidade de vida e de amor. Em termos práticos, é estar sob o mesmo teto. Morar juntos. Dever este que não existe na união estável, podendo ser reconhecida ainda que o casal resida em casas distintas. No casamento, é a regra.

Sabe-se que, no atual contexto, existe certa flexibilidade neste dever, sendo possível que casais residam em casas diferentes sem que com isso desvaneçam o casamento. Os arranjos familiares modernos, assentados na pluralidade, dão ensejo à possibilidade de não haver coabitação no casamento, seja de forma temporária, seja permanente. Há a possibilidade, inclusive, de a coabitação ser um prelúdio ao casamento, equiparado à união estável, quando houver a manifesta intenção de constituição de família.

Porém, quando a chama se apaga a coabitação torna-se um fardo e é um dos primeiros deveres conjugais a ser quebrado. O fim pensado é o divórcio, mas há que se ter em mente que o divórcio não começa com a assinatura do acordo ou no protocolo do pedido judicial, começa com a separação de fato ou de corpos.

É ali que o casamento acaba, o divórcio é mera formalização. O casal não comunga mais da mesma cama nem da mesma mesa, não havendo mais interesse na continuidade da relação, sendo que o casamento é mera reminiscência cartorial. Essa separação pode ocorrer, inclusive, sob o mesmo teto, quando o casal já não partilha mais do mesmo quarto, desde que haja caráter de permanência. Não há mais interesse no retorno à comunhão plena de vida.

E qual a importância de pensar nesse momento? Pois ele é crucial no que diz respeito à partilha de bens. Não só o fogo tem fim, mas também a comunicação patrimonial, o que significa dizer que os bens adquiridos após esse rompimento já não devem ser fruto de partilha no momento do divórcio, afinal, não há mais o esforço em comum na construção deste patrimônio e o divórcio não passa de formalidade legal.

Separação de fato ou de corpos não é sinônimo de abandono de lar. Este decorre do afastamento de, pelo menos, 1 ano do cônjuge ou companheiro, sem intenção de retorno, sem justificativa (sair depois de uma agressão não é abandono de lar), deixando a família sem assistência. Nesse caso, o desamparo pode ter consequências jurídicas, como a usucapião familiar em benefício de quem permaneceu na residência e assumiu integralmente as responsabilidades na manutenção.

Afinal, deve haver responsabilidade desde a origem até o final da relação conjugal e o papel do Direito é colocar limites e atribuir responsabilidades nas relações interpessoais, especialmente quando estão relacionadas ao lar, pois este é local sagrado de proteção da intimidade. Assim, se os olhos já estão vazios, opacos como as águas do oceano, é preciso assumir a responsabilidade do fim.

 

Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas