Opinião

Coluna Direito da Família: Matrimônios impúberes

Coluna Direito da Família: Matrimônios impúberes

 

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas

 

Questões culturais, violência intrafamiliar e especialmente a vulnerabilidade socioeconômica levam, diariamente, inúmeras crianças a formalizar a união do casamento, violando direitos humanos de vulneráveis em desenvolvimento de sua personalidade. Em nome da dignidade humana, é impreterível a proteção conjunta entre Estado e sociedade sobre os menores, em estado de vulnerabilidade. Nesse sentido, se faz imperativo o planejamento familiar e a assunção da família como cerne do desenvolvimento do indivíduo qualquer que seja sua configuração, a fim de não se negociar sobre o indisponível: a liberdade daqueles que não são capazes de responderem por si próprios.

A sacralização da união matrimonial levou à legalização da impunidade de abusos de vulneráveis, na medida em que era previsto o casamento do menor de 16 anos em caso de gravidez ou para não aplicação de pena criminal quando houvesse o casamento entre o abusador e a vítima, como se o casamento compensasse a violação dos direitos do vulnerável. O “xis” da questão, nesse caso, está na práxis social de privilégio social dado à família constituída pelo casamento que ainda reverbera na sociedade (não há regulamentação expressa quanto à união estável nesse sentido). Para proteger a “honra da família”, o casamento era o remédio infalível, sem considerar os efeitos colaterais da menor: violência doméstica, gravidez na adolescência, dependência financeira, dentre outros.

A partir da lei  13.811/2019 vedou-se o casamento dos menores de 16 anos, em qualquer hipótese. Os maiores de 16 e menores de 18 anos podem celebrar núpcias desde que autorizados por seus representantes legais. Não havendo autorização de qualquer deles, é possível o suprimento do consentimento pelo magistrado. Isso porque o casamento pode ser comparado a um contrato, no qual se estabelecem os direitos e deveres nos contratantes que vigem a relação contratual. Requisito fundamental à celebração de qualquer contrato é a capacidade das partes, a fim de que haja certeza sobre a autonomia da sua manifestação da vontade. Ainda assim, é possível a mácula da vontade aos plenamente capazes, como erro ou coação. O que dizer então quanto aos vulneráveis? Portanto, o consentimento, como requisito fundamental ao casamento, deve ser realizado por alguém capaz de fazer juízo de valor sobre o que está sendo contratado, sejam os responsáveis, seja o juiz.

No entanto, para os menores de 16 anos, a preocupação maior deve ser a garantia de seu desenvolvimento sadio de personalidade, vedando-se qualquer contratação. Qualquer contrato de menor de 16 anos é nulo de pleno direito e assim também deve ser quanto ao casamento. A prioridade devem ser as garantias constitucionais de educação, lazer, cultura, saúde… Claro que simples disposição legal não veda essas uniões, que continuam acontecendo de forma informal e não notificada, pois a cultura é elemento fundamental na formação da identidade da sociedade e do indivíduo e mantém-se a cultura do casamento para “lavar a honra”. O Direito, com seu papel de regulamentação social, não pode se voltar a regulamentação de violações culturais, ainda que seja discurso de coação hegemônica, mas deve agir para coagir à realização de condutas éticas e probas com o outro, em uma sociedade esclarecida (aos moldes de Kant). Na busca de efetividade dessa imposição legal, políticas públicas e mobilização social são imprescindíveis, visto que também é papel da sociedade proteger os vulneráveis, em uma sociedade ética e democrática.

A modificação cultural é um pouco mais morosa e sair do patriarcado para garantir o pleno empoderamento feminino depende de muita luta, especialmente em um contexto social em que a vulnerabilidade é relativizada pelo discurso majoritário, quando contrariar seus interesses hegemônicos. Os direitos humanos e fundamentais, historicamente, são fruto de afirmações sociais. O contexto atual tende à tentativa de efetivação de direitos dos menores, em todos os seus aspectos, em vista do pleno desenvolvimento da personalidade para a construção de sociedade pacífica e democrática, a qual não pode remanescer, tão somente, em uma folha de papel.