Opinião

Coluna AMC: A esperança de Beckett

Coluna AMC: A esperança de Beckett

Coluna AMC: A esperança de Beckett

 

          Se o presente é uma sombra que se move separando o ontem do amanhã, nessa sombra repousa a esperança. Então, a esperança repousa numa sombra que se move em direção ao futuro. Ora, é a nossa própria vida, a nossa jornada em busca de algum sentido…

O dicionário diz que a esperança é um substantivo feminino que pode ser também um sinônimo de confiança em algo bom, ou também sinônimo de fé. E, mais, que ter esperança é acreditar que alguma coisa muito desejada vai acontecer. Ela pode ser fundamentada na realidade ou baseada em alguma utopia, algo difícil de alcançar. A esperança é também uma das três virtudes da teologia, além da fé e da caridade.

Nas artes, na filosofia e na história, a esperança adquire várias significações. Para William Shakespeare, ela é o único remédio para os miseráveis. Napoleão Bonaparte dizia que um líder é um vendedor de esperança. Na Bíblia, encontramos em Eclesiastes 9,4 “enquanto há vida, há esperança”, frase que utilizamos muito em nosso dia a dia. Para Tales de Mileto, “a esperança é o único bem comum a todos os homens; aqueles que nada mais têm, ainda a possuem”. Segundo Frederico I, “o sonho e a esperança são dois calmantes que a natureza concede ao ser humano”.

Aprecio muito os conceitos de Horácio: “a duração breve da nossa vida proíbe-nos de alimentar uma esperança longa”, e de Frank Lloyd Wright: “o presente é a sombra que se move separando o ontem do amanhã; nela repousa a esperança”. Então, a esperança repousa numa sombra que se move. Ora, é a nossa própria vida, a nossa jornada em busca de algum sentido. É disso que trata a peça de teatro “Esperando Godot”, do apreciado autor irlandês Samuel Beckett, escrita em 1948 e publicada em 1952. Ele recebeu a influência de outros grandes autores, como James JoyceAlbert CamusFranz Kafka e Oscar Wilde.

Nessa obra, a única coisa certa que temos é a esperança. Os personagens nos representam e conversam, falam sobre a vida, esperando a chegada de Godot, que ninguém sabe o que é, ou mesmo quando vai chegar. Em resumo, a própria espera por respostas é o sentido da vida; e enquanto esperamos, devemos “jogar” o jogo da vida. Ou, se o sentido da vida está no jogo e não na espera, enquanto jogamos, esperamos. Ou, ainda, as duas coisas ao mesmo tempo. Em “Esperando Godot” perdemos a noção da distinção entre realidade e ficção. Por conotação, entre vida e jogo, entre realidade e representação. E é dessa falta de noção que surge com grande força a constatação maior da obra de Beckett: a vida é assim mesmo, uma espécie de jogo …

A criatividade dos personagens (em analogia, nossa criatividade) em encontrar e vivenciar “jogos”, para que o tempo passe e a espera não se torne insuportável, é infinita, e se repetirá para sempre, todo dia, todo amanhecer, por força ou não da vontade individual. Na peça, os personagens, através de situações patéticas, engraçadas, jogadas líricas, caminham em uma linha tênue sem saber ao certo se representam ou vivenciam suas experiências. Dualidades e paradoxos, como a vida. Estagnação e mobilidade, paralisia e criatividade. Beckett foi considerado o criador do “teatro do absurdo”, por acreditar ser possível colocar luz sobre o “absurdo” da existência humana.

Dr. Márcio Couto – CRM – PR 14933 – Cardiologista e Membro da diretoria da AMC.