Cotidiano

Cia. Dos À Deux traduz em gestos e imagens a ausência do amor

INFOCHPDPICT000062698370RIO ? Eles se tornaram experts em tomar uma palavra e abri-la em mil pedaços, transformando um vocábulo num vasto vocabulário de temas e, sob a linguagem do teatro, claro, de cenas guiada por gestos e movimentos físicos. Foi assim desde o início, quando André Curti e Artur Ribeiro releram ?Esperando Godot?, de Beckett, e elegeram o termo ?exclusão? como guia da primeira obra da dupla, ?Dos à deux?, em 1998. O título se tornou o nome da companhia e a estratégia da palavra-impulso balizou a criação de um repertório: a loucura de ?Aux pieds de la lettre? (2001), a migração em ?Saudade em terras d?água? (2005), a diferença de ?Fragmentos do desejo? (2009), a solidão em ?Ausência? (2012) e a fraternidade como enredo de ?Irmãos de sangue? ? vencedora do Shell 2014 de melhor cenário e de ator (dividido pelos dois). Agora, ?Gritos? ecoa, de modo plural, o amor; e mais especificamente sua ausência e a urgência com que o mundo precisa dele. A obra estreia amanhã no CCBB, e 18 anos após primeira peça da Cia. traz de novo apenas a dupla em cena.

? Quando decidimos nos reencontrar em cena, como um duo, já havia esse componente do amor envolvido, mas o levamos para outros caminhos ? diz André. ? Evitamos colocar a nossa história pessoal em cena, assim como repetir as linguagens e técnicas que estabelecemos nessa trajetória. Assim como a relação, a nossa arte também precisa se reinventar.

? Nos demos uma rasteira, nos colocar de cabeça para baixo ? diz Artur.

? Não podíamos nos apoiar e descansar no que sabemos fazer bem, no conforto. Era preciso se transformar para haver um reencontro potente em cena. Esse trabalho é uma virada na nossa carreira, em termos de linguagem ? diz André.

Ele se refere, principalmente, ao modo como a dupla opera e mistura diferentes técnicas de marionete, máscaras, gestos e objetos. Em ?Gritos?, André e Artur contracenam com bonecos de proporções humanas que foram criados a partir de moldes de seus próprios corpos e rostos, exercitando um jogo de fusão e desassociação com tais bonecos.

? Quando uso o rosto de um boneco, ele não é apenas uma máscara, porque o meu rosto não está escondido, está visível, assim como quando os bonecos se movimentam, não é bem marionete, porque os nossos corpos estão sendo vistos, atuando ? diz Artur.

? Diferentemente de trabalhos anteriores, em que a expressão se dá principalmente por nossos corpos e rostos, aqui estamos a serviço dos bonecos, por trás deles, fazendo tudo acontecer ? diz André. ? Nunca havíamos trabalhado assim, e isso nos exigiu criar novas técnicas.

O trabalho de modelagem foi guiado pela marionetista russa Natacha Belova ? responsável também pelos bonecos de ?Irmãos de sangue? ? e do brasileiro Bruno Dante, que tomaram as medidas das cabeças, mãos, pés e braços da dupla para esculpir os bonecos.

? Cada personagem da peça nasceu de uma parte de corpo ? conta Artur. ? A primeira coisa que pedimos a eles foram dois bonecos. Ficamos três semanas olhando para eles, mudos como eles, até que começamos a desestruturá-los. E aí, por exemplo, surgiu a Louise, a partir de duas pernas e um pau no meio, algo que não a pertencia. E a partir de uma cabeça, veio a mãe dela, uma velha seca, cujo corpo é uma cadeira.

O trabalho encadeia três diferentes histórias que, filtradas pela linguagem da Cia., são encenadas como ?poemas gestuais?. O formato aposta na criação de narrativas sem palavras, e confia na capacidade evocativa da música, criada por Beto Lemos, Fernando Mora e Marcelo H, e das imagens criadas pelos gestos, partituras corporais, e da manipulação de objetos e dos bonecos. Toda a dramaturgia é uma escrita física, que se desenvolve através do corpo. É a partir dele que os mundos internos e o contexto ao redor dos personagens são transmitidos.

? Em geral, falamos das dificuldades que o mundo nos impõe, os muros que nos afastam e impedem o contato, a troca de afetos ? diz Artur. ? Nos interessam personagens com dificuldades de existir por conta de suas diferenças.

?Gritos? busca a expressão dessas angústias a partir do gesto essencial, que comunica toda uma história a partir de atos precisos e concentrados. No primeiro ?grito?, intitulado ?Louise e a velha mãe?, a transexualidade leva a personagem-título ao desejo de tornar-se invisível, justamente pelo modo como os outros a veem. Nascida num corpo de homem ? ?Um corpo que ela não quer, que não se sente à vontade?, diz Artur ?, ela busca se desviar da intolerância e da transfobia.

No microcosmo familiar, ela tem de lidar com sua mãe, uma velha e doente senhora que ? também invisível perante a sociedade ? exercita um duplo jogo de dependência e rejeição com sua filha; ou seu filho, como sua não aceitação quer fazer valer. Já em ?O muro?, André e Artur estão separados por uma cerca. De um lado, Artur carrega um boneco sem cabeça, e do outro, André fita uma cabeça presa dentro de uma gaiola. Entre o absurdo e o onírico, a cena se desenvolve como uma tentativa de reencontro entre partes apartadas do corpo humano. Acentuando o tom não realista da encenação, ?Amor em tempos de guerra? evidencia desde o seu título o grande desafio imposto à humanidade. Afinal, em meio à adversidade e à diversidade de conflitos, a possibilidade ou a impossibilidade do amor se apresenta como um paradigma, algo que solicita um gesto capaz de ultrapassá-lo.

? Cada dia mais, é de amor que as pessoas sentem falta ? diz André. ? Criamos uma obra poética a partir dessa inquietação, que é política, social. ?Gritos? é um grito, em silêncio, de ?por favor, um pouco mais de amor?.