Cotidiano

Cena para um Debret digital

O que o perdeu, pelas regras do protagonismo, foi a aclamação da anticandidatura. Ulysses gastou perdulariamente sua quota de triunfos. Tendo ele mesmo criado, montado e conduzido o enredo que liquidou a ditadura, foi obrigado a ceder o palco a Tancredo, e, por consequência, a Sarney, na cena final da tomada do poder. A questão desloca-se para a História: valeu a pena?

Naquele tempo ? estamos falando da década de 1970, quando Ulysses Guimarães assumiu a liderança da oposição ? a ditadura era tão forte, tão forte, sob a proteção de uma repressão com licença para torturar e matar, que nenhuma previsão antecipava para menos de três décadas o fim da dinastia dos generais-presidentes. A incerteza sobre quando haveria um governo civil era absoluta naquela tarde de sábado ? precisamente às 14h10m de 22 de setembro de 1973 ? quando Ulysses foi aclamado anticandidato. É possível que nenhum outro político brasileiro tenha vivido triunfo semelhante, como testemunharam os mais velhos e podem afirmar os que sobreviveram. Não foi uma claque ensaiada, mas uma onda espontânea, pois nem ao menos se tratava de uma eleição real. Vivia-se uma farsa, tanto que o general Geisel tinha até data marcada (15/3/1974) para tomar posse na Presidência. Mesmo assim, as pessoas gritavam sem parar: ?Um, dois, três/quatro, cinco mil/Ulysses Guimarães/Presidente do Brasil.? E Ulysses, braços abertos, alegre, sorvendo o triunfo. Constata-se hoje, passados 43 anos, e a avaliação só foi possível na perspectiva do tempo, que, naquela tarde, Ulysses matou três coelhos com uma só cajadada. Primeiro, ousou o desafio civil, só tolerado porque pareceu inconsequente, já que os militares não perceberam a carga de ironia e deboche da anticandidatura. Também se desfez a sensação de onipotência da ditadura, e começaram a pipocar gestos de desobediência civil. Ulysses também demarcava seu próprio espaço como litigante informal, porém, obrigatório, no processo político. E ainda produziu ?Navegar é preciso?, o pujante discurso, redigido de próprio punho.

Um documentarista digital, com pretensões de reviver, no século XXI, o francês Jean-Baptiste Debret cujas aquarelas, aparentemente ingênuas, fixaram em profundidade o Brasil do século XIX, não teria dificuldades na escolha de cenas emblemáticas do enfrentamento civil da ditadura. Nem precisaria desenhar e selecionar pigmentos para compor seus quadros. Bastaria garimpar nos arquivos fotos e vídeos com registros da perseguição de cavalarianos a padres paramentados na saída na Candelária, no 7º dia da morte do estudante Édson Luiz; estudantes presos no Congresso da UNE em Ibiúna; a capa do ?Jornal do Brasil? do AI- 5, com Costa e Silva; a passeata dos 100 mil; o general Job Lorena apresentando a versão oficial fajuta do atentado do Riocentro, com a foto do sargento morto, no Puma; o jornalista assassinado Vladimir Herzog , na cena montada como se tivesse se enforcado; o jurista Sobral Pinto no comício das ?Diretas já”, no Rio. E muitas outras, nenhuma, porém, historicamente mais rica do que a paradoxal aclamação de Ulysses anticandidato, ponto de partida do levante eleitoral que abalou o país, com o MDB crescendo de 786 diretórios municipais para 3.000 em seis meses e, para desespero da ditadura, vencendo as eleições majoritárias, para senador, em 15 estados, contra apenas cinco, do partido governista.

Luiz Gutenberg é jornalista, autor de ?Moisés Codinome Ulysses Guimarães- Uma biografia?