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Campeã olímpica, Rafaela Silva tem história de superação

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Luta semifinal do Campeonato Mundial de judô, em Paris, em 2011. Rafaela Silva, aos 19 anos, derrota a americana Marty Malloy e recebe o abraço da técnica Rosicleia Campos, que já pede licença para ir conferir quem vencera a outra luta semifinal, disputada simultaneamente no Palais Omnisport. “Peraí, Rosi. Não precisa ir: quem ganhou foi a Sato, eu ouvi durante a luta”, interrompeu Rafaela, para assombro da técnica. Nove em cada dez judocas costumam relatar que o grau de concentração durante uma luta decisiva é tanto que é impossível ouvir o que está em volta, a torcida, as orientações do técnico e menos ainda outras lutas a dezenas de metros de distância. Rafaela Silva ouro

Rafaela Silva se acostumou desde cedo a prestar atenção no seu entorno. Nascida e criada até os oito anos na Cidade de Deus, tinha ordem dos pais, várias vezes desobedecida, para brincar apenas em frente ao portão de casa, e tratar de correr para dentro ao primeiro sinal de tiroteio. A brutalidade da vida era seu ambiente desde pequena.

– É claro que não é normal, não pode ser natural para uma criança, ver alguém morrer na sua frente. Ou ver outras crianças usando drogas. Tinha tiroteio quase todo dia. De dentro de casa, a gente via os traficantes pulando de muro em muro das casas, fugindo da polícia – relembrou a judoca, em entrevista ao Globo publicada em 7 de junho.

FUTEBOL, PIPA E BRIGA COM MENINOS MAIS VELHOS

Ainda na Cidade de Deus, aos sete anos seus pais a levaram à academia onde Geraldo Bernardes dava aula de judô. A iniciativa era mais uma tentativa de domar a filha briguenta: os pais com frequência recebiam advertências da escola, e as brigas na rua se sucediam. Junto da irmã Raquel, Rafaela foi levada por Geraldo ao Instituto Reação, criado pelo ex-judoca Flávio Canto (bronze em Atenas-2004) e que tem escolinhas do esporte em áreas carentes do Rio. Até hoje, Geraldo é o treinador de Rafaela, no polo do Reação do sub-bairro do Pechincha, em Jacarepaguá.

– Os pais as trouxeram para treinar porque ela não obedecia ninguém, brigava muito. Nas primeiras aulas, vi que tinham boa coordenação, uma agressividade importante. Na Cidade de Deus, ela peitava todo mundo. Tinha que canalizar isso para o judô. Vi que tinha um diamante bruto ali – diz o treinador com experiência de mais de 20 anos na seleção brasileira. – A Rafaela, embora não seja a mais alta (tem 1,68m) na categoria dela (peso leve, até 57kg), ela tem uma envergadura muito boa, tem os braços longos. Isso dá vantagem, ela meio que abraça a oponente. Também pode escolher uma distância que a favorece na pegada.

Aos 24 anos, Rafaela ri ao lembrar da fase brigona na infância. Saiu da Cidade de Deus para a Freguesia, também em Jacarepaguá, onde mora com os pais até hoje. Diz que o técnico Geraldo condicionava a mudança de faixa na escolinha de judô, obsessão de toda criança, a um boletim do colégio com boas notas. Melhorou na escola, mas não abandonou o hábito de jogar bola e soltar pipa com os meninos. Brincava e brigava com garotos mais velhos.

– Eles me provocavam, sabiam que eu fazia judô, queriam ver se eu era boa de briga mesmo. E apanhavam. Brincava e brigava com eles, mulher não sabe brigar, só puxa cabelo – se diverte.

2015 832561729-20150712210727-17513.jpg_20150713.jpgNo Instituto Reação, seu talento foi lapidado. Em 2008, foi campeã mundial júnior (sub-20). Três anos depois, no Mundial de Paris, acabou perdendo aquela final contra a japonesa Aiko Sato. Com apenas 20 anos, foi à sua primeira Olimpíada, em Londres, e quase decidiu encerrar a carreira após o fracasso. Rafaela vencera a primeira luta e estava em vantagem contra a húngara Hedvig Karakas, mas foi desclassificada por um golpe ilegal, por ter iniciado um ataque diretamente pela perna da adversária, o que havia sido proibido por uma mudança de regra três anos antes.

Ainda no tatame, ela chorou, admitiu o erro e lamentou a eliminação. De volta à Vila Olímpica, extravasou a raiva batendo boca com torcedores nas redes sociais. Foi xingada e xingou de volta, sendo dura mesmo com alguns que a abordaram sem desrespeito. Também foi vítima, porém, de ataques racistas. Voltou ao Rio triste com a derrota e ainda mais com os episódios seguintes, que ganharam repercussão. Ficou quase quatro meses sem vestir um quimono, como lembra seu treinador.

Convencida a não desistir, retomou os bons resultados ainda em dezembro de 2012, com o bronze no World Masters, e no ano seguinte chegou ao auge.

Rafaela Silva e a conquista do ouro

COM A FAMÍLIA NA ARQUIBANCADA

Rafaela é a primeira mulher brasileira campeã mundial de judô, título conquistado em 2013, no Mundial disputado no Rio. Naquela vez, a competição aconteceu no Maracanãzinho. Os pais e a irmã conseguiram comprar ingressos para todas as lutas de sua categoria. O Comitê Olímpico do Brasil (COB) reserva a cada atleta o direito de comprar dois ingressos de cada prova que disputar. Estes foram reservados para o cunhado e a sobrinha.

Depois do título mundial de 2013, Rafaela teve uma queda nos resultados. Um “período de acomodação” muito comum com quem chega a um grande título, na avaliação de seu treinador. Foram temporadas ruins em 2014 e 2015. Este ano, foi bronze no Grand Slam de Paris. Atualmente, é só a 13ª no ranking mundial de sua categoria.

Mas, pelo currículo, não pode ser excluída da lista de candidatas ao pódio. No torneio olímpico de judô, cada categoria é disputada num único dia, às vezes com pouco intervalo entre as lutas. Rafaela vai lutar no dia 8 de agosto. Pisará no tatame para a primeira luta de manhã, o horário de sua preferência.

– Em outros torneios, o intervalo entre uma luta e outra pode chegar a duas ou três horas. Tem atleta que dorme. Se eu dormir, não consigo mais lutar. Fico andando sozinha pelo ginásio. Fui bem no Rio no Mundial, é minha cidade. Vou atrás dessa medalha.